Sobre a contingência (1686)

G.W. Leibniz
(1686)
Fonte: Grua 302-6

Em Deus, existência não difere de essência, ou, em outros termos, para Deus é essencial existir. Donde, Deus é um ser necessário.

As criaturas são contingentes, isto é, suas existências não decorrem de suas essências.

As verdades necessárias são aquelas que podem ser demonstradas através de uma análise dos termos, de modo que ao fim tornam-se identidades, tal como na álgebra uma equação ao expressar uma identidade, por fim, resulta da substituição de valores [por variáveis]. Ou seja, as verdades necessárias dependem do princípio de contradição.

As verdades contingentes não podem estar sujeitas ao princípio de contradição; do contrário, todas as coisas seriam necessárias e nada seria possível, a não ser aquilo que realmente alcança a existência.

Todavia, desde que afirmemos que tanto Deus como as criaturas existem e que as proposições necessárias são verdadeiras não menos que as contingentes, é necessário que exista alguma noção comum, tanto da existência contingente como da verdade essencial.

Em minha opinião é comum a toda verdade que se possa sempre dar uma razão para toda proposição não-idêntica; nas proposições necessárias, essa razão necessita; nas proposições contingentes, inclina.

E parece ser comum às coisas existentes, tanto necessária como contingentemente, que possuam mais razão para existir que quaisquer outras, fossem elas colocadas em seus lugares.

Toda proposição verdadeira universal afirmativa, quer necessária quer contingente, possui alguma conexão entre sujeito e predicado. Nas identidades essa conexão é auto-evidente; nas demais proposições deverá evidenciar-se pela análise dos termos.

E através desta solução revela-se a distinção entre verdades necessárias e contingentes; algo não muito fácil de se entender a menos que se esteja familiarizado com as matemáticas. Pois nas proposições necessárias, quando a análise continua indefinidamente, chega-se a uma equação que é uma identidade; isso é o que denominamos “demonstrar-se uma verdade com rigor geométrico”. Porém, nas proposições contingentes continua-se a análise ao infinito através de razões para razões, de modo que nunca se completa a demonstração, embora sempre subjaza uma razão para a verdade; mas, a razão é entendida completamente apenas por Deus, que exclusivamente, percorre a série infinita em um só golpe do espírito.

A questão pode ser ilustrada com um exemplo adequado oriundo da geometria e da aritmética. Exatamente como nas proposições necessárias, onde, através de uma contínua análise do predicado e do sujeito, as coisas podem, finalmente, ser conduzidas ao ponto onde é aparente a inclusão da noção do predicado no sujeito, assim também, quando nos ocupamos dos números, podemos, afinal, alcançar uma medida comum através de uma contínua análise que consiste em separar inicialmente um, então, outro. Mas, exatamente como também há uma proporção ou relação até entre os próprios incomensuráveis, a despeito do fato de que suas determinações prosseguem ao infinito e nunca têm fim (como Euclides demonstrou), então, também nas verdades contingentes há uma conexão entre os termos, ou seja, há a verdade, mesmo se essa verdade não pode ser reduzida pelo princípio de contradição ou necessidade através de uma análise, à identidade.

Pode-se questionar se a proposição: “Deus escolhe o melhor” é necessária ou se é um dos Seus decretos livres; de fato, Seu primeiro decreto livre.

Semelhantemente, alguém também pode questionar se essa proposição é necessária: “Nada existe sem que haja uma razão maior para existir do que para não existir.”

É certo que há uma conexão entre sujeito e predicado em toda verdade. Portanto, quando se diz: “Existe o Adão que peca”, é preciso que haja algo nessa noção possível, “Adão que peca”, devido ao que, diz-se que ele peca.

Parece que devemos admitir que Deus sempre age sabiamente, ou seja, de tal modo que qualquer um que reconhecesse Suas razões iria reconhecer e reverenciar Sua suprema justiça, bondade e sabedoria. E Deus parece nunca fazer algo simplesmente porque agrada-Lhe agir deste ou daquele modo, a menos que, ao mesmo tempo, Lhe seja agradável por uma boa razão.

Desde que não podemos conhecer a razão formal verdadeira para a existência de qualquer caso particular pois isso envolve uma progressão ao infinito, nos é, portanto, suficiente conhecer a verdade das coisas contingentes a posteriori, isto é, através da experiência e ainda, ao mesmo tempo, sustentar, universalmente ou no geral, aquele princípio divinamente implantado em nossa mente, e ratificado tanto pela razão como pela própria experiência (na medida em que possamos penetrar nas coisas): que nada ocorre sem uma razão; assim como o princípio dos contrários, segundo o qual aquilo que possui maior razão, ocorre sempre.
E assim como o próprio Deus decretou que sempre atuaria apenas em concordância com as verdadeiras razões da sabedoria, também criou as criaturas racionais de um modo tal que passassem a agir unicamente de acordo com as razões predominantes ou inclinantes, razões que são verdadeiras ou, em seu lugar, aparentes.

Se não houvesse tal princípio, não haveria princípio de verdade nas coisas contingentes, pois o princípio de contradição certamente não possui lugar entre as verdades contingentes.

Deve-se, certamente, sustentar que nem todos os possíveis alcançam a existência; do contrário, não se poderia imaginar romance que não existisse em algum lugar e em alguma época. Na verdade, não parece ser possível que todas as coisas possíveis existam, já que elas alcançam a existência obstruindo-se mutuamente.

De fato, há um número infinito de séries de coisas possíveis. Ademais, uma série certamente não pode estar contida em uma outra, desde que todas e cada uma delas está completa.

A partir desses dois princípios, segue-se o resto:

1. Deus sempre age com a marca da perfeição ou sabedoria;
2. Nem toda coisa possível alcança a existência.

A essas pode-se acrescentar:

3. Em toda proposição universal afirmativa verdadeira o predicado está no sujeito, isto é, há uma conexão entre predicado e sujeito.

Assumindo-se que a proposição: “A proposição que possui a maior razão para existir [isto é, ser verdadeira] existe [isto é, é verdadeira]” é necessária, devemos examinar se ela, então, segue aquela proposição que possui a maior razão para existir [isto é, ser verdadeira] é necessária. Mas, é injustificável negar a conseqüência. Pois, se por definição, uma proposição necessária é aquela cuja verdade pode ser demonstrada com rigor geométrico, então, de fato, pode ocorrer desta proposição ser demonstrável: “toda verdade e apenas uma verdade possui maior razão” ou seja: “Deus sempre age com a maior sabedoria”. Mas, disto não se pode demonstrar a proposição: “a proposição contingente A possui maior razão [de ser verdadeira]” ou “a proposição contingente A está em conformidade com a sabedoria divina”. E, portanto, não se segue que a proposição contingente A seja necessária. Então, embora se possa admitir que é necessário para Deus escolher o melhor, ou que o melhor é necessário, disto não se infere que aquilo que é escolhido é necessário, desde que não há demonstração que seja o melhor. E, aqui, a distinção entre necessidade da conseqüência [necessitas consequentiae] e necessidade do conseqüente [necessitas consequentis] é de algum modo relevante; ao final, a proposição em questão é uma necessidade da conseqüência, não do conseqüente, pois é necessária uma vez que admitamos a hipótese de que a entendamos como sendo a melhor, assumindo que o melhor é necessariamente escolhido.

Parece mais seguro atribuir a Deus o modo mais perfeito possível de realizar as coisas. Nas criaturas não se pode estar tão certo de que agirão de acordo com até mesmo a mais óbvia razão; com respeito às criaturas essa proposição não pode ser demonstrada.