Reflexões sobre o progresso da verdadeira metafísica (1694)

G. W. Leibniz
(1694)

(1) Observo que muitas pessoas que têm satisfação com a ciência das matemáticas não possuem inclinação para meditações metafísicas; encontram esclarecimento em uma e escuridão em outra. A principal causa disso parece ser aquelas noções gerais que pensam conhecer tão bem, mas que se têm tornado ambíguas e obscuras em virtude da negligência e do modo inconsistente pelo qual essas pessoas se expressam. E as definições ordinárias longe de expressarem a natureza das coisas, nem mesmo expressam os significados (meanings) das palavras. Esse problema tem se expandido a outras disciplinas que estão subordinadas de vários modos a essa primeira ciência. Assim, em lugar de definições claras, temos dado distinções triviais e, em lugar de axiomas universais, temos apenas regras particulares que quase encontram tantas exceções quanto exemplos. Mas, simultaneamente, as pessoas são obrigadas a utilizar termos metafísicos todo o tempo e, ao crescerem, se convencem de que entendem as palavras que costumeiramente utilizam. Essas pessoas estão sempre falando sobre substância, acidente, causa, ação, relação ou ratio e diversos outros termos dos quais, contudo, ainda não formaram, de modo claro, os verdadeiros significados pois esses são ricos em excelentes verdades, ao passo que são estéreis aqueles outros que lhes temos dado. Esta é a razão pela qual não nos deveríamos surpreender que essa primeira ciência, que é denominada “filosofia primeira” e que Aristóteles qualificou de “ciência que estamos procurando”, ainda está para ser averiguada.

(2) Platão está freqüentemente interessado, em seus diálogos, em investigar a riqueza dessas noções enquanto Aristóteles faz o mesmo nos livros da Metafísica. Contudo, parece que não obtiveram progresso. Já os neoplatônicos, falavam de um modo tão misterioso que acabaram sendo levados à absurdidade; e os escolásticos encontravam-se mais interessados em levantar questões que em respondê-las: deveriam ter o auxílio de um Gellius, aquele magistrado romano que, segundo Cícero, chegou a oferecer seus serviços aos filósofos de Atenas na esperança de resolver as suas disputas por meio de algo semelhante a um processo judicial. Em nossa própria época, muitos excelentes homens têm ampliado seus interesses pela metafísica mas, até agora, sem grande sucesso. Deve-se admitir, ainda assim, que o senhor Descartes realizou algo de importante aqui: ele restaurou os esforços de Platão em livrar a mente de sua escravidão aos sentidos e o fez utilizando-se das dúvidas dos céticos da última Academia. Mas tendo sido tão precipitado em suas afirmações e não tendo distinguido suficientemente bem a certeza da incerteza, ele não alcançou seu propósito. Possuía ele uma idéia errada da natureza do corpo que, sem prova, entendia como sendo extensão pura e não pôde entender de modo algum a união da alma com o corpo. Isso se deve à não compreensão da natureza da substância em geral; ele como que passa bruscamente ao exame de difíceis questões sem ter explicado as partes que as compõem. A natureza dúbia de suas Meditações não poderia ser entendida mais claramente do modo como está em uma pequena obra na qual tenta, a pedido do padre Mersenne, condensá-las em forma de demonstrações. A obra está incluída em meio às suas Réplicas às Objeções (CSMK II, 92, 113 ss).

(3) Há outros homens que têm tido algumas profundas reflexões. Mas falta-lhes clareza; que é, todavia, ainda mais necessária aqui que nas matemáticas. Nestas, as verdades trazem consigo as suas provas e é o fato de que podemos sempre examiná-las que lhes tem dado tanta certeza. Esse é o motivo pelo qual a metafísica, carecendo de tais provas, necessita de um novo modo de tratamento das coisas; algo que irá substituir a conjectura; algo que servirá como um fio de Ariadne através do labirinto e que conterá acessibilidade comparável àquela encontrada no modo de falar mais popular.

(4) A importância dessas investigações será vista no que temos a dizer acerca da noção de substância. A idéia que tenho dela é tão preciosa que dela resultam muitas das mais importantes verdades a respeito de Deus, da alma e da natureza do corpo e que são geralmente não só desconhecidas como não provadas. Para esclarecer essa noção, aqui direi que a reflexão sobre o conceito de força (à qual atribuí uma ciência especial que pode ser denominada Dinâmica) é de grande auxílio para a compreensão da natureza da substância. Essa força ativa é diferente da faculdade dos escolásticos, que consiste apenas em uma possibilidade aproximada de ação e que nela mesma está morta, por assim dizer, e inativa, a menos que seja excitada por algo exterior a ela. Mas a força ativa envolve uma enteléquia, ou uma atividade; está a meio caminho entre uma faculdade e uma ação, além de conter em si mesma um certo esforço ou conatus. É levada à ação por si mesma sem qualquer necessidade de auxílio, desde que nada a impeça. Tudo isso pode ser esclarecido pelo exemplo de um corpo pesado suspenso ou por um arco flexionado; pois embora seja verdadeiro que a força peso e a força elástica devam ser explicadas mecanicamente pelo movimento de matéria etérea, é, todavia, também verdadeiro que a razão última para o movimento da matéria é a força dada na criação, que existe em todos os corpos mas que de certo modo está constrangida pelas interações mútuas dos corpos. Sustento que esse poder de ação existe em todas as substâncias e que, de fato, sempre produz alguma atividade real e que um corpo por si mesmo jamais está perfeitamente em repouso – o que está em desacordo com a idéia daqueles que vêem o corpo como extensão, unicamente. Também será visto destas meditações, que uma substância jamais recebe sua força de uma outra substância criada; o que de lá provém é tão somente o constrangimento ou determinação que dá origem à força secundária ou o que é denominado força movente e que não deve ser confundida com aquilo que determinados autores denominam impetus, que avaliam pela quantidade de movimento e tornam proporcional à velocidade, quando os corpos são idênticos. Ao contrário, a força movente, que é absoluta e vital, ou seja, aquela que é sempre conservada, é proporcional aos possíveis efeitos que dela se originam (ver Discurso de Metafísica § 17 e Ensaio de Dinâmica §§ 25-26). Isso é onde os cartesianos estavam enganados ao pensarem que a mesma quantidade de movimento é conservada nos encontros entre os corpos. E noto que o senhor Huygens concorda comigo neste ponto, em conformidade com o que afirmou, há tempos, em Histoire des ouvrages des savants: que a mesma força de elevação é sempre conservada.

(5) Finalmente, um dos pontos mais importantes a ser esclarecido por essas meditações é aquele acerca da comunicação entre as substâncias e da união entre a alma e o corpo. Espero que esse grande problema seja de tal modo resolvido, e de maneira clara, que sirva por si mesma como uma prova de que encontramos a chave para parte dessas questões. Não penso que haja qualquer maneira de dar uma explicação alternativa sem referência a uma extraordinária congregação da causa primeira com os costumeiros mecanismos das causas secundárias. Porém, falarei mais a esse respeito em outra oportunidade…

Fonte: GERHARDT, C.I. (org.) Die Philosophischen Schriften von Leibniz. 7 vols. Hildesheim: Olms. 1977