Carta de Leibniz à Princesa Sofia

Carta de Leibniz à princesa Sofia 1
[Hanôver, 31 de outubro de 1705] 2
G. W. Leibniz

Tradução e Notas: Juliana Cecci Silva e William de Siqueira Piauí.

Sem dúvida a V. A. E.3 se lembra que quando vossa curiosidade e a da rainha, vossa filha, fez-me falar de filosofia e dos fundamentos da imortalidade da alma, eu apresentei [minha doutrina d]as Unidades sustentando que as almas eram verdadeiras unidades, isso é, substâncias simples onde não entram outras substâncias para compô-las; mas que os corpos são apenas multiplicidades (multitudes) e, conseqüentemente, que os corpos pereciam pela dissolução de suas partes, a partir das quais eles são compostos, enquanto as almas são imperecíveis.

As opiniões a esse respeito eram muito diversas. Alguns diziam que, ao falar das unidades, eu queria colocar esta palavra em voga em um novo uso para confundir as pessoas. V. A. E. pedia mais esclarecimentos, não tanto para si própria, mas para as outras [pessoas]; a rainha estava impressionada com os exemplos que eu apresentava sobre os pontos com relação à linha e sobre os momentos com relação ao tempo, que mostram o que significa ser simples e sem partes. Eu lhe demonstrei também que era necessário chegar às substâncias simples, pois, de outro modo, não existiriam quaisquer compostos, dado que absolutamente não existem multiplicidades sem verdadeiras Unidades. Essa discussão nos oferecia uma agradável distração em Charlottenburg, quando tinha a honra de estar com a rainha. E quando Sua Majestade, que adorava se aprofundar nas coisas, encontrava algum homem meditativo, ela o introduzia no assunto das Unidades. O que foi tão longe que até as pessoas de outra opinião tomavam conhecimento disso, e o Lorde de Obdam pediu que eu lhe fornecesse por escrito um parecer sobre esse [assunto] para que o levasse à Holanda, uma vez que ele é curador da Universidade de Leide.4

Você irá me perguntar, senhora, com que propósito eu volto a falar das Unidades. Mas quando V. A. E. souber a alegria que tive a este respeito, por me encontrar com um dos mais ilustres autores do [nosso] tempo, como há pouco eu a informei, a senhora não ficará nada surpresa com meu grande entusiasmo que me faz falar de minhas queridas Unidades. Este autor me fortalece ainda mais, porque não é filósofo e nem mesmo sábio de profissão, mas é de um grande gênio e de um nascimento muito afortunado. Parece que a natureza e o gênio falaram dentro dele, e prefiro definitivamente o julgamento deles ao da leitura ou da instrução.

V. A. E. irá me perguntar quem é, então, este autor sobre o qual faço tanto alarde. Senhora, eu bem percebo que você jamais adivinharia; deste modo, dir-lhe-ei em poucas palavras que se trata do monsenhor duque de Borgonha.5 Imagino, senhora, que tenha ficado completamente surpresa, mas deve supor que se trata da mais pura verdade. De fato, ainda não vi o livro deste Autor, mas vi no Journal des savants de Amsterdã, p. 356, de setembro último, sua reprodução parcial. Eis o que se relata ali sobre a circunstância que fez nascer o seu livro.

Quando o monsenhor duque de Borgonha era muito jovem, ensinaram-lhe as Matemáticas, e como se percebeu sua grande perspicácia, propuseram-lhe que escrevesse de seu punho, todos os dias, o que fora ensinado na véspera; a fim de que (é o que dizem) ao ditar para si mesmo o que lhe fora ensinado, e repassando por ordem e sem pressa as verdades Geométricas conforme o seu encadeamento, ele se acostumasse a ir menos rápido e de maneira mais segura. Acrescento que este era o meio de torná-lo atento e de fazer com que fossem suas próprias meditações que ele deveria colocar por escrito. Sem contar que o sucesso lhe dava prazer e o estimulava a continuar. Note-se que estas meditações reunidas fizeram nascer os Elementos de geometria do monsenhor duque de Borgonha, os quais acabam de ser publicados em 220 páginas in quarto. E eis o que isso tem a ver com as minhas unidades.

Este príncipe se põe a explicar os incomensuráveis6 na p. 33 de seu livro; supondo, por exemplo, um quadrado perfeito cujo lado seja de um pé, a diagonal sendo uma linha reta que leva de um ângulo a outro ângulo que lhe é oposto, será incomensurável com o lado, isso é, esta diagonal não poderá ser expressa por nenhum número de pés nem das partes de um pé, como segundas, terceiras, quartas etc., décimas, centésimas, milésimas etc., ou outras quaisquer. Mas quanto menor for a parte que se tomar por medida, mais se aproximará do exato valor, pela milésima mais do que pela centésima parte, e assim ao infinito. Donde se segue que uma linha pode ser dividida ao infinito e nela podemos considerar um sem-número de pontos, mas que, entretanto, de maneira alguma ela é composta de pontos. Porém, depois de ter considerado estes tipos de verdades, é preciso observar que, por outro lado, “quando se considera atentamente a existência dos Seres (estas são as próprias palavras da reprodução parcial do livro), compreende-se muito claramente que a existência pertence às Unidades, e não aos números (ou às Multiplicidades). Vinte homens só existem porque cada homem existe. O número é apenas uma repetição das Unidades, somente a elas pertence a existência. Jamais poderia existir número se não existisse Unidade. Isso bem entendido (diz o ilustre autor deste livro): este pé cúbico de matéria é uma única substância, [ou] são muitas? – Não se pode dizer que seja uma única substância; pois (neste caso) não se poderia dividi-lo em dois (se a substância não estivesse no corpo antes da divisão, a todo momento se faria nascer novas substâncias). Se dissermos que são muitas, já que há muitas, esse número, independente de qual seja, é composto de Unidades. Se dissermos que existem muitas substâncias, é preciso que exista uma, e esta uma não pode ser duas. Portanto, a matéria é composta de substâncias indivisíveis. Eis nossa razão (acrescenta este príncipe perspicaz) reduzida a estranhos extremos. A Geometria nos demonstra a divisibilidade da matéria ao infinito e, ao mesmo tempo, nós descobrimos que ela é composta de indivisíveis”.

Li tudo isso com admiração e encontro meu pensamento sobre as Unidades maravilhosamente bem expresso. Mas o que diremos quanto à dificuldade que o príncipe notou, quanto à qual parece que derrubamos com uma mão o que com a outra foi construído? Então, senhora, devo lhe dizer que é ao solucionar esta dificuldade que acredito ter prestado algum serviço à ciência e ter estabelecido a verdadeira filosofia que busca o conhecimento das substâncias incorpóreas. O falecido Sr. Cordemoy7 ficou bastante confuso quanto a isso em seu livro sobre a diferença entre o corpo e a alma. E o senhor Arnauld8 me fez lembrar deste livro quando lhe informei sobre minha doutrina das Unidades. O Sr. Cordemoy, então, vendo que as coisas compostas deviam ser o resultado das coisas simples, foi forçado, cartesiano do jeito que era, a recorrer aos Átomos, abandonando, assim, seu mestre; isso é, [foi forçado] a aceitar pequenos corpos de uma dureza intransponível que ele tomava pelos primeiros Elementos ou pelas substâncias mais simples que podem existir na matéria. Para além do fato que todos os corpos também têm partes atuais, ainda que elas não estejam separadas umas das outras; ele não levou em consideração que esta dureza perfeita e intransponível devia ser miraculosa9 e que, efetivamente, todo corpo, grande ou pequeno, tem partes separadas entre elas as quais exercem aí movimentos internos, na medida em que ele é impulsionado por outros; de outro modo, existiriam corpos inamovíveis (impassibles), sem falar de muitas outras razões que mostram que a Matéria é atualmente dividida ao infinito. E os que são de outra opinião estão bem longe de conhecer a variedade e a extensão das obras do autor infinito, cujas marcas (caractères) se encontram por toda parte. Haveria ainda muitas coisas a dizer a esse respeito, mas isso nos levaria longe demais.

Contudo, quanto àquela dificuldade, respondo ser verdade que isso não impede absolutamente a matéria de ser composta de substâncias simples e indivisíveis, visto que a multiplicidade destas substâncias ou destas Unidades é infinita. No entanto, o mesmo não ocorre com o corpo Matemático ou o espaço, que é algo ideal e de modo algum é composto de pontos, assim como o número abstrato e tomado em si mesmo não é composto de frações de uma extremidade última maior ou menor. E, de fato, não se pode conceber a menor das frações, nem nada que no número corresponda aos pontos ou extremidades do espaço, porque o número não representa qualquer situação (situation) nem relação de existência (rapport d’existence). É verdade que algumas vezes os Matemáticos tomam certa fração como a última de todas, porque depende deles não ir mais longe em sua subdivisão, e desprezar, por exemplo, os erros que não ultrapassam 11.000.000.000.000.000. Lembro-me que foi assim que Cavalieri10 empregou um certo Elemento Logarítmico. Vê-se também, por isso, que o número (seja ele inteiro, fracionário (rompu), ou irracional (sourd11) ) não é, com relação às frações, uma quantidade contínua como a linha, o tempo, e o grau de intensidade na velocidade. Assim, embora a massa consista em uma porção (amas) de substâncias simples sem número, e embora a duração das criaturas, do mesmo modo que o movimento atual, consista em uma porção de estados momentâneos, todavia é preciso dizer que o espaço de modo algum é composto de pontos, nem o tempo de instantes, nem o movimento matemático de momentos, nem a intensidade de graus extremos. Acontece que a matéria, bem como o decurso das coisas e, por fim, todo composto atual é uma quantidade discreta, mas que o espaço, o tempo, o movimento matemático, a intensidade ou o crescimento contínuo que se concebe na velocidade e em outras qualidades, enfim, tudo aquilo que conduz a uma consideração que chega até as possibilidades, é uma quantidade contínua também indeterminada nela mesma, ou indiferente às partes que se pode considerar, e que estão dadas atualmente na natureza.12 A Massa dos corpos é dividida atualmente de uma maneira determinada, e quanto a isso nada é exatamente contínuo; mas o espaço ou a continuidade perfeita que está na idéia assinala somente uma possibilidade indeterminada de dividir como queiramos. Na matéria e nas realidades atuais o todo é o resultado das partes; mas nas idéias ou nos possíveis (que compreendem não somente este universo, mas ainda qualquer outro que possa ser concebido, e que o entendimento divino se apresenta efetivamente), o todo indeterminado é anterior às divisões, como a noção do inteiro é mais simples que a das frações e a precede.

E embora cada fração (como cada tom da harmonia) sempre subsista na região das verdades eternas, realizada pelo entendimento divino, contudo, um número e uma fração não devem ser concebidos como uma porção de outras frações menores. Também os pontos, os momentos, os extremos em um aumento ou diminuição – contínua segundo algumas leis Matemáticas – das qualidades não são as partes, mas as extremidades do espaço, do tempo etc.

A fim de melhor conceber a divisão atual da matéria ao infinito, e a exclusão que há de toda continuidade exata e indeterminada, é preciso considerar que Deus já produziu tanta ordem e variedade quanto era possível de ser introduzido até então, e que, portanto, nada restou de indeterminado, enquanto o indeterminado constitui a essência da continuidade. É isso que a perfeição divina ensina ao nosso Espírito e que a própria experiência confirma por intermédio dos nossos sentidos. Não existe gota d’água tão pura na qual não observemos alguma variedade ao examiná-la adequadamente. Um pedaço de pedra é composto de certos grãos e, por intermédio do microscópio, estes grãos se parecem com rochas nos quais existem uma infinidade de combinações da natureza (mil jeux de la nature). Se a capacidade de nossa visão fosse sempre aumentada, ela sempre encontraria em que se exercer. Por toda parte há variedades atuais e jamais uma perfeita uniformidade, nem duas partes de matéria inteiramente semelhantes uma à outra, tanto no grande como no pequeno.

V. A. E. bem o vivenciou quando sugeriu ao falecido Sr. de Alvensleben13, no jardim de Herrenhausen, que ele tentasse encontrar duas folhas cuja semelhança fosse perfeita, mas ele não encontrou nenhuma. Sempre há, todavia, divisões e variações atuais nas massas dos corpos existentes, mesmo que busquemos o ainda menor. É a nossa imperfeição ou falha dos nossos sentidos que nos faz conceber as coisas físicas como Entes Matemáticos, onde existe o indeterminado. E pode-se demonstrar que não há qualquer linha ou figura na natureza que produza exatamente e mantenha uniformemente pelo menor espaço e tempo [que seja] as propriedades da linha reta ou circular, ou de alguma outra [figura] da qual um espírito finito possa compreender a definição. O espírito pode conceber e desenhar pela imaginação em meio aos corpos, seja qual for a figura deles, qualquer linha que se queira imaginar; como é possível ligar os centros das circunferências por meio de retas imaginárias, e como se concebe eixos e círculos em uma esfera que não os têm efetivamente. Mas a Natureza não pode, e a sabedoria divina não quer traçar exatamente estas figuras de essência limitada (bornée), que pressupõem algo de determinado e, por conseqüência, de imperfeito nas obras de Deus14. Todavia, elas se encontram nos fenômenos ou nos objetos dos espíritos limitados: nossos sentidos não as observam, e nosso entendimento dissimula uma infinidade de pequenas diferenças (inégalités), as quais não impedem, contudo, a perfeita regularidade da obra de Deus, ainda que uma criatura finita não possa compreendê-la. Contudo, as verdades eternas fundadas sobre as idéias matemáticas limitadas não deixam de nos servir na prática, na medida em que é permitido fazer abstração das diferenças demasiado pequenas para poder causar erros consideráveis em relação ao objetivo que se propõe; como um engenheiro que traça na terra um polígono regular não se preocupa se, por algumas polegadas, um lado é mais comprido do que o outro.

Vê-se bem que o Tempo não é uma substância, já que uma hora, ou alguma outra parte do tempo que se considera jamais existe inteira e em todas suas partes conjuntamente; não é senão um princípio de relações (principe de rapports), um fundamento da ordem (fondement de l’ordre) nas coisas, desde que se conceba sua existência sucessiva ou sem que elas existam conjuntamente. O mesmo deve ocorrer com o espaço; é o fundamento da relação da ordem (fondement du rapport de l’ordre) das coisas, mas desde que se conceba existirem conjuntamente. Ambos os fundamentos são verdadeiros, ainda que sejam ideais. A continuidade uniformemente regrada, ainda que seja apenas suposição e abstração, constitui a base das verdades eternas e das ciências necessárias: ela é o objeto do entendimento divino, como o são todas as verdades, e seus raios se propagam também sobre o nosso. O possível imaginário participa destes fundamentos da ordem na mesma proporção que o atual, e um Romance poderá ser tão bem regrado, no que diz respeito aos lugares e tempos, quanto uma história verdadeira. A matéria nos parece um contínuo, mas só parece, assim como o movimento atual. É como a poeira do alabastro que, ao fervermos no fogo, parece ser um fluido contínuo; ou como uma roda dentada parece um diáfano contínuo ao girar com muita velocidade, sem que se possa discernir o lugar dos dentes do lugar vazio entre os dentes, nossa percepção unindo os lugares e os tempos separados. Então, pode-se concluir que uma massa de matéria não é verdadeiramente uma substância, que sua unidade é apenas ideal, e que (o entendimento colocado à parte) é apenas um aggregatum, uma porção, uma multiplicidade de uma infinidade de verdadeiras substâncias, um fenômeno bem fundado (um phénomène bien fondé), que jamais desmentem as regras das puras matemáticas, mas sempre contêm algo além. E pode-se concluir também que a duração das coisas, ou a multiplicidade dos estados momentâneos, é a porção de uma infinidade de manifestações (éclats) da Divindade, da qual cada uma, a cada instante, é uma criação ou reprodução de todas [as] coisas, não existindo aí qualquer passagem contínua, falando propriamente, de um estado ao outro seguinte.

O que prova exatamente esta célebre verdade dos Teólogos e dos Filósofos cristãos, que a conservação das coisas é uma criação contínua, e fornece um meio bastante particular de verificar a dependência de todas as coisas que mudam para com a divindade imutável, que é a substância primitiva e absolutamente necessária, sem a qual nada poderia ser nem durar. E eis, ao que parece, o melhor uso que se poderia fazer do labirinto da composição do Contínuo, tão famoso entre os Filósofos15; a análise da duração atual das coisas no tempo nos leva demonstrativamente à existência de Deus, como a análise da Matéria que se encontra atualmente no Espaço nos leva demonstrativamente às Unidades de substância, às substâncias simples, indivisíveis, imperecíveis e, conseqüentemente, às Almas, ou aos princípios de vida, que não podem ser senão imortais, [e] que estão difundidos por toda a natureza. Vê-se que as Enteléquias, ou forças primitivas, unidas ao que há de passivo em cada unidade (pois as criaturas são ativas e passivas simultaneamente), são a fonte de tudo. Vê-se por isso em que consistem as unidades. Mostrei, em outro lugar, como as almas sempre conservam alguns corpos, e que, portanto, os próprios animais subsistem. Também expliquei distintamente a comunicação (commerce) da Alma e do corpo. Por fim, mostrei que as Almas racionais ou os Espíritos são de uma ordem superior, e que Deus cuidou deles não só como um perfeito Arquiteto completo, mas também como um Monarca perfeitamente bom.
Tradutores: Juliana Cecci Silva se graduou em Letras (português/francês) pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo; e-mail: julianacecci [@] yahoo.com.br. William de Siqueira Piauí se doutorou em Filosofia pela Universidade de São Paulo e atualmente é professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL); e-mail: piauiusp [@] gmail.com. Atualmente, ambos coordenam o Núcleo de Estudos Leibniz–Poincaré de Filosofia e História da Ciência (NELPHIC): nelphic.com.br

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Notas:
1. Dentre outros filhos, a princesa Sofia de Hanôver (1630-1714) teve com Ernesto Augusto, o duque de Brunswick-Lüneburg, a filha Sofia Carlota (1668-1705), a qual se casaria com o rei da Prússia Frederico III e se tornaria mãe de Frederico Guilherme I. Foi especialmente a pedido desta última que Leibniz escreveu grande parte da Teodicéia, uma resposta ao Dictionnaire do filósofo francês Pierre Bayle (1647-1706); o qual, a partir de sua segunda edição, fora lido e discutido por ela e uma pequena corte na casa real da Prússia.
2. Texto extraído de Die philosophischen schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz (GP). Hrsg v. Carl Immanuel Gerhardt. Hildesheim: Olms, 1960, VII, pp. 558-565. Texto cotejado com: LEIBNIZ, G. W. Discours de métaphysique suivi de Monadologia et autres textes. França: Edições Gallimard, 2004 (pp. 351-362); edição estabelecida, apresentada e com notas de Michel Fichant, que contém uma coletânea de textos que, segundo seu organizador, auxiliariam tanto na compreensão do Discurso de metafísica quanto na da Monadologia. O motivo de traduzirmos essa carta em separado está associado ao fato de acreditarmos que ela pode esclarecer uma parte importante do complexo problema do contínuo na filosofia leibniziana; quem quiser conhecer mais detalhadamente essa problemática e o uso que fizemos dessa correspondência pode ler nosso artigo: “Leibniz e as duas faces do labirinto do contínuo: uma introdução”. Argumentos – revista de filosofia. UFC, n. 3, p. 16-24, 2010.
3. O termo V. A. E. se refere a Vossa Alteza Eleitoral.
4. Leibniz se refere a Jacob van Wassenaer-Obdam (1645-1714); esse holandês, filho de um almirante homônimo, além de general na Guerra da Sucessão Espanhola, foi presidente-curador da Universidade de Leide de 1690 a 1714.
5. Leibniz se refere a Luís, o duque da Borgonha (1682-1712), filho de Luís, o Grande Delfim da França, e de Maria Ana da Baviera; nasceu em Versalhes e, sendo o segundo na linha sucessória de seu avô paterno, o rei Luís XIV da França, sucedeu seu pai como herdeiro do trono francês depois da sua morte em 1711. Entretanto, ele e sua esposa, Maria Adelaide de Sabóia, contraíram sarampo e morreram no início de 1712. Seu filho mais velho, Luís, o duque de Bretanha, sucumbiu à mesma enfermidade, restando apenas seu filho mais novo, com então apenas dois anos de idade, que se tornou Luís XV da França.
6. Leibniz se refere ao velho problema da incomensurabilidade da diagonal de um retângulo pelos lados, àquilo que denominamos de número irracional; problema que fez ruir uma das bases da filosofia pitagórica, segundo a qual “tudo é número”, no sentido, pois, que tudo está associado a grandezas comensuráveis, grandezas para as quais podemos sempre determinar proporcionalidades baseadas em números inteiros, grandezas racionais.
7. Geraud Cordemoy (1626-1684), advogado, historiador e filósofo francês, tornou-se conhecido principalmente por seu trabalho sobre metafísica e sobre teoria da linguagem; freqüentou os círculos filosóficos de Paris e, como seu amigo Bossuet, era um admirador de René Descartes (1596-1650); em 1675, foi eleito membro da Academia Francesa. Leibniz se refere aqui à obra Discernement du corps et de l’âme de Cordemoy e à discussão de Descartes sobre o vazio e os átomos que aparecem principalmente no início da segunda parte (artigos 16 a 20) dos seus Princípios da Filosofia.
8. Leibniz se refere ao padre, teólogo, filósofo, matemático e lógico francês Antoine Arnauld (1612-1694) que, para ser distinguido de seu pai, foi apelidado de o Grande Arnauld; além de ser uma das figuras mais destacadas do jansenismo e opositor dos jesuítas no século XVII; teve papel central na produção de conhecimento da abadia de Port-Royal: foi autor, com Pierre Nicole, de La logique ou l’art de penser (1662 – também conhecida como “Lógica de Port-Royal”). Foi o primeiro a polemizar com o Círculo Cartesiano ao escrever suas objeções às Meditações metafísicas de Descartes. Em 1686, iniciou uma longa correspondência com Leibniz, o qual submeteu o Discurso de metafísica ao seu exame.
9. O uso do termo “miraculosa” significa que esse modo de pensar deve ser recusado em nome da divisibilidade infinita e atual da matéria, bem como com a sua constante mobilidade; junto com a recusa do vazio trata-se da crítica do todo da filosofia atomista.
10. Bonaventura Francesco Cavalieri (1598-1647), sacerdote jesuíta e matemático italiano, foi discípulo de Galileu Galilei (1564-1642). Cavalieri estudou astronomia, trigonometria esférica e cálculo logarítmico, e é considerado um dos precursores do cálculo integral. Sua obra mais conhecida, a Geometria indivisibilibus continuorum nova (Nova geometria dos contínuos indivisíveis), foi publicada em 1635; nela desenvolveu a idéia de Johannes Kepler (1571-1630) quanto às quantidades infinitamente pequenas.
11. Parece que é só a partir do século X, graças aos árabes, que a noção de número pode compreender tanto os racionais (números reais positivos) quanto os irracionais (denominados aqui sourds).
12. Do nosso ponto de vista, Leibniz está tentando deixar claro que tudo na natureza, no atual, naquilo que não pode ser chamado de apenas ideal, está individuado; é esse o sentido de a matéria dever ser considerada discreta, recusa explicita da filosofia cartesiana que identificava a substância dos corpos com a extensão; todo corpo é muito mais que a extensão, é muito mais que res extensa, uma característica que se assemelha com a continuidade ideal e que não deveria ter sido considerada como a substância dos corpos.
13. Karl August von Alvensleben (1661-1697) foi conselheiro em Hanôver; graças à extensa biblioteca de seu pai, ajudou Leibniz em suas pesquisas históricas. Leibniz se refere a uma cena que ficou famosa e que se passou nos jardins de Herrenhausen, em Hanôver.
14. No Discurso de metafísica (§ 1), Leibniz já havia afirmado que o conhecimento de Deus era ilimitado e perfeito; cremos que ele se refere a algo semelhante a um conhecimento a partir de noções incompletas, conhecimento insuficiente, imperfeito ou inadequado, que não se ajusta ao seu conceito de Deus.
15. No § 7, do prefácio da Teodicéia, a problemática tratada aqui de modo superficial assumirá a seguinte forma: “Existem dois famosos labirintos onde nossa razão se perde muitas vezes; um diz respeito à grande questão do livre e do necessário, sobretudo quanto à produção e quanto à origem do mal; o outro consiste na discussão da continuidade (continuité) [ou do continuum] e dos indivisíveis que constituem seus elementos, e no qual deve entrar a consideração do infinito. O primeiro embaraça praticamente todo o gênero humano, o outro influencia somente os filósofos”. Como o próprio Leibniz enuncia aqui, essa carta pode servir como introdução para a compreensão do que seja o labirinto do contínuo, especialmente no que diz respeito à análise da matéria.