G. W. Leibniz
(1673)
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O teólogo catequista – Há pouco mantivemos um diálogo acerca da imortalidade da alma e da necessidade do Criador do mundo. Se tu continuares a ajudar-me assim, muito facilitarás a tarefa de instruir-te. Agora, abordemos a espinhosa questão da justiça de Deus; não há, de fato, objeção contra a providência mais freqüente ou sofística que a desordem das coisas. Desejo, com o auxílio da reta razão, que tu prepares e, por assim dizer, lustres o problema de modo que no momento em que eu trouxer a luz das verdades reveladas, sejam nossos espíritos tocados pelo reflexo mais puro de seus raios.
O filósofo catecúmeno – Agrada-me esta condição, que nos beneficia a ambos. Começa já a perguntar.
T. – Então, vamos ao nó da questão: acreditas que Deus é justo?
F. – Sim, acredito; e, na verdade, sei que é.
T. – A quem denominas Deus?
F. – À substância onisciente e onipotente.
T. – E o que é ser justo?
F. – Justo é o que ama a todos.
T. – Mas, o que é amar?
F. – Deleitar-se com a felicidade alheia.
T. – O que significa deleitar-se?
F. – Perceber a harmonia.
T. – Finalmente, o que é harmonia?
F. – Semelhança na variedade, isto é, diversidade compensada pela identidade.
T. – Admitida tua definição, parece necessário que Deus, se é justo, a todos ama.
F. – Assim é, certamente.
T. – Porém, tu sabes que muitos negam isto.
F. – Tem sido negado por alguns grandes homens, mas também, às vezes, eles próprios o afirmam depois de dar outro sentido às palavras.
T. – Talvez falemos acerca disto posteriormente. Por enquanto, anseio por ver o argumento que vais utilizar.
F. – Eu os tomarei das respostas que ambos temos admitido. Não é admitido que Deus é onisciente?
T. – E então?
F. – Portanto, não se concebe que haverá harmonia em alguma coisa se Ele não a conhece continuamente.
T. – Assim é.
F. – Além disso, toda felicidade é harmônica ou bela.
T. – Concordo.
F. – Provarei isso de modo que outros não possam negar. A felicidade só existe nos espíritos.
T. – Correto. Pois nada é feliz a menos que se reconheça como tal (recorda o verso famoso: O fortunatus nimium, bona si sua norint !). Todo aquele que está consciente de seu estado é um espírito. Portanto, nada é feliz a menos que seja um espírito.
F. – Bem deduzido. Porém, a felicidade é indubitavelmente o estado espiritual mais aprazível ao próprio espírito e o único estado que realmente agrada ao espírito é a harmonia.
T. – Sem dúvida, já que, como há pouco concordamos, deleitar-se nada mais é que perceber a harmonia.
F. – Portanto, a felicidade consiste no estado espiritual mais harmônico. A natureza do espírito consiste em pensar; assim, a harmonia do espírito consiste em pensar a harmonia; e a máxima harmonia espiritual, ou seja, a felicidade, consiste na concentração da harmonia universal, isto é, de Deus, no espírito.
T. – Perfeitamente. Assim, por seu turno, prova-se que a felicidade espiritual é o mesmo que a contemplação de Deus.
F. – Portanto, demonstrei minha afirmação de que toda felicidade é harmônica.
T. – Agora é tempo de concluíres a demonstração: Deus ama a todos.
F. – Considere-a concluída. Se toda felicidade é harmônica (como demonstrado) e Deus conhece toda harmonia (pela definição de Deus) e toda percepção da harmonia é um deleite (pela definição de deleite), segue-se que toda felicidade é aprazível a Deus. Assim, (pela definição de amor admitida anteriormente) Deus ama a todos e, portanto, (segundo a definição de justo formulada no início), Deus é justo.
T. – Quase dir-te-ia que o demonstraste e creio firmemente inclusive que ninguém, nem mesmo aqueles que têm negado a graça universal, se oporiam a isto, contanto que tenham entendido as palavras no sentido em que as empregaste, que não diferem em nada de seu uso habitual.
F. – Considero que isto é o que se pode inferir de suas próprias opiniões. Pois quando dizem que Deus só ama os eleitos, bem indicam que Ele tem amado a uns mais que a outros (pois isto é escolher) e, assim, já que nem todos poderiam ser salvos, (segundo a harmonia universal das coisas, tal como uma pintura destaca, mediante sombras, as consonâncias e dissonâncias) há alguns, menos amados, que têm sido rejeitados, certamente não porque Deus o deseje (pois Deus tampouco deseja a morte do pecador), mas, porque ao menos assim exige a natureza das coisas. Por conseguinte, quando se diz que Deus tem amado a um e odiado a outro, deseja-se dizer que o tem amado menos e que, assim, o tem rejeitado já que não podia eleger a todos. Pois assim como o bem menor se apresenta, às vezes, sob o aspecto do mal, também, no caso do concurso de dois amores, pode-se afirmar que o amor menor assume o aspecto do ódio, ainda que essa expressão seja menos habitual. No entanto, o motivo pelo qual Deus ama a um mais que a outro não é este o lugar para decidirmos.
T. – Pelo contrário, daqui brotam as principais dificuldades e, portanto, tratemos de satisfazê-las com semelhante boa fortuna.
F. – Quais?
T. – Ouça as principais. Se Deus se deleita com a felicidade de todos, por que não tornou a todos felizes? Se ama a todos, como condena tantos? Se é justo, como se mostra tão pouco eqüitativo que de uma matéria completamente igual, do mesmo barro faz alguns vasos para a honra e outros para a ignomínia? E como pode dizer-se que não favorece o pecado se o admite ou tolera com pleno conhecimento (posto que podia eliminá-lo do mundo)? Mais ainda: como se pode afirmar que não é o autor do pecado se criou tudo de modo tal que daí se segue o pecado? E que ocorre com o livre arbítrio uma vez afirmada a necessidade de pecar e o que acontece com a justiça do castigo uma vez eliminado o livre arbítrio? E o que dizer dos prêmios, se a graça é o único fator pelo qual se distingue uns dos outros? Finalmente, se Deus é a razão última das coisas, o que imputaremos aos homens e o que aos demônios?
F. – Tu me esmagas com o número e o peso das dificuldades.
T. – Portanto, devemos abordá-las em separado. Antes de tudo, concordas que nada é sem razão?
F. – Isso admito a tal ponto que considero que se pode demonstrar que nunca existe coisa alguma à qual não se possa (ao menos para aquele que é onisciente) atribuir uma razão suficiente de por que existe em vez de não existir e de por que é melhor assim que de outro modo. Quem nega isto destrói a distinção entre o ser e o não ser. Tudo que existe terá em cada caso todos os requisitos para existir. Mas, todos os requisitos para existir, tomados em conjunto, são a razão suficiente de existir; assim, tudo que existe tem uma razão suficiente para existir.
T. – Nada tenho a dizer acerca desta demonstração, melhor, contra essa opinião e, ainda mais, contra essa prática do gênero humano. Pois, quando os homens percebem algo, especialmente se é algo que lhes é pouco usual, perguntam sem exceção: “Por quê ?” (cur), ou seja, perguntam pela causa, seja eficiente ou, se o autor é racional, final. Disto nasceram os vocábulos cuidado (cura) e curiosidade (curiositas), como inquirir provém de quem ou quais. E uma vez dada a razão, se têm tempo ou lhes parece necessário, buscam a razão da razão até que, se são filósofos, vão dar em algo claro que seja necessário, isto é, que constitua por si mesmo sua razão, ou, se são gente do vulgo, em algo vulgar que já lhes é familiar e aí se detêm.
F. – Assim é geral e, inclusive, necessariamente; de outro modo, os fundamentos das ciências ver-se-iam solapados, pois assim como o todo é maior que a parte é o princípio da aritmética e da geometria, ciências da quantidade, assim também nada é sem razão é o fundamento da física e da moral, ciências da qualidade ou, o que é o mesmo (pois a qualidade nada mais é que a potência de atuar e de padecer), ciências da ação e, obviamente, do pensamento e do movimento. E tu admitirás que não se pode demonstrar um teorema físico e moral, por menor e mais fácil que seja, a menos que se assuma esta proposição; inclusive a prova da existência de Deus se apóia unicamente nela.
T. – Portanto, admites que nada é sem razão.
F. – Como não admitir, ainda que não perceba a que conduz esta laboriosa confirmação de uma proposição tão clara.
T. – Espera um momento e verás perfeitamente que complicada cadeia de dificuldades ali repousa; por exemplo, esta: Judas foi amaldiçoado?
F. – Quem ignora?
T. – Foi amaldiçoado sem razão?
F. – Não me pergunte o que, como sabes, acabo de admitir.
T. – E, qual era essa razão?
F. – Creio que a condição em que morreu, isto é, o ódio a Deus em que ardia ao morrer, no que consiste a natureza do desespero. Isto é suficiente para amaldiçoar-se. Pois quando no momento da morte, enquanto abandona o corpo, a alma não padece de novas sensações exteriores, apóia-se apenas em seus últimos pensamentos; pelo que, não muda exceto que agrava a disposição em que se encontrava ao morrer; ora, do ódio a Deus, isto é, ao Ser felicíssimo se segue a dor máxima, pois o ódio consiste em sofrer com a felicidade do outro (como amar é alegrar-se com a felicidade do amado); assim, é a máxima dor perante a máxima felicidade. A máxima dor é a miséria, ou seja a maldição. Donde aquele que odeia a Deus ao morrer, amaldiçoa a si mesmo.
T. – Mas, donde surgiu nele o ódio a Deus, ou seja, o desejo ou vontade de causar danos ao Criador?
F. – Somente acreditando ele na malevolência ou no ódio que Deus por ele nutria. Pois, assim como o segredo admirável da providência estabeleceu que Deus só cause dano por último àqueles que servilmente O temem, isto é, aos que têm a presunção de que serão prejudicados, assim, pois, pelo contrário, quem crê firmemente ser eleito ou querido por Deus, esse converte-se em eleito (porque ama resolutamente a Deus).
T. – Por que acreditou que Deus lhe queria mal?
F. – Porque acreditava ser rebelde e que Deus era em tirano; acreditava haver caído sem perdão de Deus; acreditava-se culpado perante um Deus cruel; acreditava-se infeliz e que Deus era injusto.
T. – Poder-se-ia afirmar, mais concisamente, que Judas era, simultaneamente, penitente e desesperado. Mas, donde recebera essa disposição anímica?
F. – Percebo que perguntarás indefinidamente. Judas teve em si a penitência em virtude de sua própria consciência e o desespero por sua ignorância de Deus. Sabia que havia pecado, acreditava que Deus o castigaria; sabia, já que Deus o havia dotado de espírito, que havia pecado, pois isso, de fato, correspondia à verdade. Pecou ao trair seu Mestre pois havia podido e querido fazê-lo. Pôde porque Deus permitiu tal ato. Quis porque acreditou ser um bom ato.
T. – Mas, por que considerou um bem o que era um mal? Ademais, por que desesperou uma vez descoberto seu erro?
F. – Aqui tenho que recorrer às causas da crença, pois o desespero também é uma crença. Toda crença possui duas causas: a índole daquele que crê e a disposição do objeto. Não acrescento outras crenças pré-existentes porque as crenças primárias se explicam finalmente pela disposição do objeto da alma e pelo caráter do corpo; isto é, pelo estado da pessoa e pelas circunstâncias da coisa. Por meio do qual não se pode dar uma razão exata da falsa crença em Judas a não ser que não se tenha recorrido à fonte e não se tenha exposto todos os estados de seu espírito; espírito que não foi modificado pelos objetos, até chegar ao caráter inicial no nascimento.
T. – Aqui te tenho. O pecado provém de um poder e uma vontade. O poder provém de Deus; a vontade, da crença. Esta provém, por seu turno, do caráter e do objeto. Porém, ambos procedem de Deus. Portanto, todos os requisitos do pecado provêm de Deus e, assim, Deus é a razão última do pecado e da maldição (bem como de todas as outras coisas). Já observas o que se segue daquele teorema: nada é sem razão? Na realidade, como tu disseste, todas as coisas que não têm em si a razão de seu ser, tal como o pecado e também a maldição, devem ser reduzidas a uma razão e a razão dessa razão até que se reduzam àquilo que é a razão de si mesmo, isto é, o ser por si mesmo, ou seja, a Deus, e este raciocínio coincide com a demonstração da existência de Deus.
F. – Reconheço que existe a dificuldade. Recompor-me-ei por um instante e retomarei o ânimo.
T. – Bem, vamos. Encontraste finalmente algo, amigo? Pois de repente teu semblante tornou-se leve e promete algo alegre e estimulante.
F. – Desculpe-me esta pausa, que espero não tenha sido inútil. Pois se alguma vez tive uma certeza é a que estou experimentando com minha investigação; que se alguém se volta a Deus ou, o que é o mesmo, afasta-se dos sentidos e reconduz a mente a si mesmo, e se tenta alcançar a verdade com sentimento sincero, então, abrem-se as trevas sob um golpe imprevisto de luz e em plena noite, através da densa escuridão, aparece o caminho.
T. – Estas são palavras de um iniciado.
F. – Tu julgarás se eu alcanço algo. Não posso negar que Deus é a razão última das coisas e, por isso, do ato de pecar.
T. – Se admites isto, admites tudo.
F. – Não te apresses tanto. Não posso, repito, não posso negar, pois é certo, que suprimindo-se Deus, suprimir-se-á a série inteira das coisas; e que dispondo-O, dispõe-se a série, bem como as criaturas que foram ou vão ser, as ações boas e más das criaturas e, assim, seus pecados; e, todavia, nego que os pecados derivem da vontade divina.
T. – Portanto, pretendes que os pecados ocorrem não por que Deus os deseje, senão por que Deus existe?
F. – Acertaste em cheio. Ou seja, ainda que Deus seja a razão dos pecados, não é o autor dos pecados. E se é lícito falar à moda da escolástica, direi que a última causa física dos pecados (como a de todas as criaturas), está em Deus; mas, a causa moral, no que peca. Isso queriam dizer, parece-me, aqueles que afirmavam que a substância da ação existe por Deus, porém, não a malícia da ação; ainda que não tenham sido capazes de explicar como a malícia não se seguiria ao ato. Teriam falado com maior exatidão se dissessem: Deus contribui com todas as coisas para o pecado, exceto pela a vontade e, por isso, não peca. Penso, portanto, que os pecados não devem ser atribuídos à vontade mas sim ao entendimento divino ou, o que é o mesmo, àquelas idéias eternas ou naturais das coisas, para que ninguém vá imaginar que há dois princípios das coisas e deuses gêmeos antagônicos, um que é o princípio do bem e outro, princípio do mal.
T. – Assombra-me o que dizes.
F. – Farei de modo que reconheças que é verdade. Fornecerei um exemplo que tornará mais clara e aceitável minha exposição. A quem, suplico-te, devemos atribuir o fato de que três vezes três são nove? À vontade divina? Julgaremos que Deus decretou que em um quadrado a diagonal é incomensurável com o lado?
T. – Julgo que não, se somos sensatos; pois, de outro modo não poderíamos entender o que significam os números nove e três, nem quadrado, lado ou diagonal; pois esses nomes careceriam de referentes na realidade, como se alguém dissesse Blitiri ou Vizlipuzli.
F. – Portanto, estes teoremas devem ser atribuídos à natureza das coisas, isto é, às idéias de número nove ou de quadrado e àquilo em que subsistem, desde a eternidade, as idéias das coisas, a saber, ao entendimento divino. Ou seja, que Deus criou essas coisas não pela vontade, mas, pelo entendimento; Ele as entendeu como existindo. Pois se Deus não existisse todas as coisas seriam simplesmente impossíveis e o número nove e o quadrado seguiriam a sorte geral. Portanto, observas que há coisas das quais Deus é causa não por Sua vontade, mas, por Sua existência.
T. – Vejo, mas espero com angústia e admiração saber sob que matizes os pecados podem ser compreendidos.
F. – Notarás que aqui não se fez uma digressão inútil. De fato, da mesma forma que não se deve atribuir à vontade, mas sim à existência de Deus, que três vezes três seja igual a nove, assim também se deve imputar ao mesmo que a proporção entre três e nove é a que há entre quatro e doze. Pois toda razão, proporção, relação, proporcionalidade, não deriva da vontade mas sim da natureza de Deus ou, o que é o mesmo, da idéia das coisas.
T. – O que concluir, então?
F. – Se isto ocorre com a razão ou proporcionalidade, também há de ocorrer, portanto, com a harmonia e a discordância. Pois consistem na razão entre a identidade e a diversidade, já que a harmonia é a unidade na multiplicidade. A maior unidade na máxima multiplicidade é não só aparentemente desordenada como também restaurada por alguma admirável e inesperada razão à maior concordância.
T. – Finalmente vejo aonde queres ir. Isto é, os pecados ocorrem porque assim os comporta a harmonia universal das coisas que distingue a luz das trevas. Porém, a harmonia universal não existe por vontade de Deus, mas, por seu entendimento ou idéia, ou seja, pela natureza das coisas. Temos que atribuir os pecados à conta da harmonia universal e, por conseguinte, não derivam da vontade, mas, da existência de Deus.
F. – Tu adivinhaste. Pois, de fato, os pecados estão tão ligados às coisas que, se fossem eles suprimidos, seria completamente diferente a série de todas as coisas futuras. Se a série de coisas for suprimida ou alterada também suprimir-se-á ou alterar-se-á a razão última das coisas, isto é, Deus. Pois que de uma mesma razão (de uma razão suficiente e completa como é Deus para o universo) se sigam conseqüências opostas (ou seja, que do mesmo se siga o diverso), é tão impossível como que o mesmo difira de si. Pois se acrescentas o mesmo e subtrais o mesmo, permanecerá o mesmo. De fato, que outra coisa é o raciocínio senão uma adição e subtração de noções? Porém se alguém ainda resiste disponho de uma demonstração que há de superar tal teimosia. Com efeito, seja Deus A. Seja B esta série das coisas. Ora, se Deus é a razão suficiente das coisas, ou seja, o ser por si e a causa primeira, seguir-se-á esta série de coisas (assumida a existência de Deus); do contrário, Deus não seria a razão suficiente e haveria que se acrescentar algum outro requisito independente de Deus para se conseguir que esta série de coisas viesse a existir. Donde se seguiriam que há muitos princípios das coisas, segundo a opinião dos maniqueos e, ou bem haveria muitos deuses, ou bem Deus não seria o único ser por si e a causa primeira (possibilidades que suponho falsas). Assim, deve estabelecer-se que uma vez admitido Deus, então, segue-se esta série de coisas e, por isso, é verdadeira esta proposição: se A é, também será B. Ora, sabemos pelas regras da Lógica do silogismo hipotético que é válida a conversão por contraposição e, daí, pode-se inferir que: se B não é, tampouco será A. Disto se segue, pois, que ao suprimir-se ou alterar-se esta série de coisas (que inclui os pecados), Deus será suprimido ou alterado; o que desejávamos demonstrar. Por conseguinte, todos os pecados estão incluídos nesta série de coisas e estão atribuídas às idéias das próprias coisas, isto é, à existência de Deus: admitidos os pecados, a série é admitida; suprimidos os pecados, remove-se a série.
T. – Considero que esta demonstração, tal como a demonstração da existência de Deus, é inabalável e nenhum mortal poderá atacá-la com razões. Porém, observa se disto não decorrem duas conseqüências: por um lado que também todas as coisas restantes, tanto as boas como os pecados, devem ser atribuídas não à vontade de Deus, mas, à Sua natureza, ou, o que é o mesmo, à harmonia das coisas. Por outro lado, segue-se que os pecados são necessários.
F. – Ocupar-me-ei em responder à primeira objeção para que a segunda sucumba depois por si mesma. Afirmo, pois, que o motivo pelo qual Deus quer as coisas não está em Sua vontade (pois ninguém quer por que quer, mas, por que crê que a coisa o merece), mas, na natureza das próprias coisas, que estão, obviamente, contidas nas próprias idéias das coisas, ou seja, na essência de Deus. Porém, por que Deus cria as coisas? Por duas causas (que também sempre pertencem às ações dos demais espíritos), a saber: por que quer e por que pode. Mas, os pecados não se incluem entre as coisas que Deus quer ou cria, isto é, não os considera bons quando os considera um a um, a saber, em si mesmos. Mas os pecados são o resultado do que Deus quer ou cria pois Ele reconhece que intervêm na totalidade da melhor harmonia das coisas que elegeu como conseqüência. E como na série total da harmonia a existência dos pecados é compensada com bens maiores, devido a isto Ele os tolera ou os admite, ainda que os teria excluído se isso fosse absolutamente possível, ou seja, se Ele pudesse ter escolhido uma outra série melhor sem os pecados. Porém, deve-se afirmar que Ele não permite, senão que quer toda a série e também os pecados, na medida em que não são considerados distintamente em si mesmos, mas, difundidos em toda a série. Pois o amor da harmonia universal, a única cuja existência deleita de um modo absoluto a Deus, é um sentimento não das partes, mas, da totalidade da série; tudo mais, com exceção dos pecados, também deleita a Deus considerando cada parte individualmente. Todavia, a série universal não Lhe produziria um deleite maior se os pecados estivessem ausentes? Pelo contrário, Lhe agradaria menos por que esta harmonia do todo se torna deleitável graças às dissonâncias nela intercaladas e compensadas por uma admirável relação das partes.
T. – Muito me agradam teus princípios, pois por meio deles mostras que Deus é a razão de todas as existências, mas também que deveria Ele ser denominado o autor exceto daquilo que, por si mesmo, é considerado bom. Ora, retornando, não obstante, à outra objeção, observa se disto não se segue que os pecados são necessários. Pois como a existência de Deus é necessária e os pecados são conseqüências da existência d’Ele (isto é, das idéias das coisas), também os pecados serão necessários. Pois, aquilo que se segue do necessário é necessário.
F. – Com este mesmo argumento concluirás que tudo é necessário, inclusive o que afirmo e o que tu ouves, pois também isto está compreendido na série das coisas e igualmente suprimirás a contingência da natureza das coisas. Isto é contrário ao modo de falar aceito por todo o gênero humano.
T. – Que aconteceria, realmente, se algum estóico, defensor da fatalidade, isto admitisse?
F. – Não se deve admitir, pois vai contra o uso das palavras ainda que se possa suavizá-las caso se oferecesse uma explicação no sentido em que Cristo disse que é “inevitável (ou seja, ‘é necessário’) que ocorram tentações”. Porém, sem dúvida, as tentações são pecados. Pois, desgraçados sejam aqueles que com eles andam quando acontecem! Portanto, se as tentações são necessárias também será a desgraça, ou seja, que a maldição será necessária. Porém, em linguagem comum, essas conseqüências devem ser evitadas. Pois não está em nosso arbítrio deformar o uso das palavras em questões referentes à vida, ou utilizar palavras ásperas das quais, ao ouvi-las, poderiam se seguir tentações que possam perturbar homens não familiarizados com significados mesmos usuais.
T. – Porém, o que responderás a essa objeção?
F. – Quê? Unicamente mostrando que toda dificuldade surge de adjudicar (aplicar) um significado tortuoso às palavras. Daí advém o labirinto sem saída, que é uma calamidade em nosso campo. As línguas de todos os povos, devido a um sofisma universal, deformaram em diversos sentidos as palavras “necessidade”, “possibilidade”, e igualmente “impossibilidade”, “vontade”, “autor” e outras deste tipo. Para que não penses ou afirmes que digo isso para tergiversá-las, dar-te-ei uma prova evidente: omita apenas essas palavras em toda essa discussão (pois, ainda que estivessem proibidas por decreto, os homens também poderiam expressar sem elas os conteúdos da alma) e cada vez que necessites as substituas por seus significados, isto é, por suas definições, e aposto o que quiseres que, mediante uma espécie de exorcismo ininterrupto e quase como se levasses tocha, desapareceriam todas as trevas, todos os espectros e desvanecer-se-iam em tênues vapores os fantasmas das dificuldades. Aqui tens um segredo não vulgar e uma fórmula para curar os erros, abusos e tentações, que não te prescreveria nem Valerius Cordus, nem Zwelder, tampouco outro autor de prescrições farmacêuticas. Urbanus Regius certa vez escreveu sobre as fórmulas para falar com cautela. Por isso, quase todos os preceitos desta arte estão contidos no conhecimento prático desta única habilidade.
T. – Pode-se solucionar uma questão tão grave com tão pouco trabalho?
F. – Pensas que sou um oráculo? Existem palavras que muitas vezes nos molestam, atormentam, ferem, irritam, enfurecem. Se eu te dissesse: “Senhor, com pleno conhecimento, afirmas algo que me ofende e sabes que não é assim”, não creio que te indignarias muito, senão que passaria por alto, sem dificuldade, esta licença que tomou aquele que falara. Porém, se eu gritasse: “Tu mentes” (por mais que mentir seja apenas dizer, com pleno conhecimento, uma falsidade prejudicial ou injusta), meu Deus, que tempestade provocaria! O mesmo ocorre se alguém dissesse: os pecados são necessários; Deus é a causa do pecado; Deus deseja a condenação de alguns; era impossível que Judas se salvasse e, certamente, irá para o inferno. Tu substituirias esses modos de falar por estes: “Posto que Deus é a razão última das coisas, ou seja, a razão suficiente do universo, segue-se, que a razão do universo é a mais racional, que concorda com a suprema beleza ou com a maior harmonia universal (pois toda harmonia universal é suprema). Mas, a mais excelente harmonia está onde a mais desafinada discordância é inesperadamente devolvida à ordem, tal como as sombras dão relevo à pintura; a harmonia equilibra as diferentes dissonâncias em consonâncias (tal como de dois números ímpares resulta um par), os próprios pecados (coisa que deves notar) impõem seus próprios castigos. A conseqüência disto é que, assumindo-se que Deus existe, os pecados e os castigos dos pecados também existem. Porém, que isto ocorra necessariamente, que Deus o deseje, que Deus seja seu autor, é uma maneira imprudente, inoportuna e falsa de falar, tanto daquele que isto fala como daquele que escuta e compreende.
T. – Creio que puseste a descoberto o admirável segredo para evitar tantas dificuldades e não estás obrigado a seguir adiante. Porém, se possível, poderias provar com as palavras que eliminaste o que provaste com as que conservaste?
F. – Poderia provar se estivesse a meu alcance fazer com que os homens apenas utilizem as palavras para honrar a Deus e para seus próprios tranqüilos benefícios.
T. – Porém tenta.
F. – Tentarei, mas, com a condição de que o que disser respeito destas palavras (das quais, como mostrei e expliquei podemos nos abster, absolutamente prescindíveis que são) possa ser considerado como algo acordado entre nós em vez de supérfluo e, de modo algum, como obrigatório ou capcioso.
T. – Aceito tua condição.
F. – Denominarei, pois, necessário àquilo cujo oposto implica contradição, ou seja, àquilo que não se pode entender claramente. Por exemplo, é necessário que três vezes três seja igual a nove, porém, não é necessário que eu fale ou peque. Posso, pois, entender que sou um eu sem entender que sou aquele que fala; porém, entender um três vezes três que não seja igual a nove é entender um três vezes três que não é três vezes três, o que envolve contradição, como demonstra o ato de numerar (isto é, a redução dos termos à definição, a saber, a unidades). Contingente é o que não é necessário. Possível é o que não é necessário ser. Impossível é o que não é possível. Ou, resumidamente: é possível o que pode ser entendido, ou seja (para não colocar a palavra pode na definição do possível), o que é claramente entendido por quem se esforçar. Impossível é o que não é possível. Necessário, aquilo cujo oposto é impossível. Contingente, aquilo cujo oposto é possível. Querer é deleitar-se com a existência de algo. Não querer é desgostar-se com a existência de algo ou deleitar por sua não existência. Permitir é nem querer nem não querer algo e, não obstante, dele estar a par. Ser autor é, por própria vontade, ser a razão de outra coisa. Assim estabelecido, atrever-me-ia a afirmar que nenhuma conseqüência deturpada (algo pouco digno da justiça divina) pode ser extraída.
T. – Que respondes, pois, àquele argumento antes proposto: a existência de Deus é necessária, dela se seguem os pecados incluídos na série das coisas; tudo o que se segue do necessário também é necessário. Portanto, os pecados são necessários.
F. – Respondo: é falso que tudo que se segue do ser por si necessário, seja por si necessário. Evidentemente, aceita-se que das proposições verdadeiras apenas se segue o verdadeiro; porém, posto que de proposições puramente universais pode-se seguir o particular, como em Darapti, Felapton, por que do necessário por si não pode se seguir o contingente ou o hipoteticamente necessário? Porém, a partir dessa noção do necessário por si, agora, concluirei minha investigação. Pois definiu-se o necessário como aquilo cujo contrário não se pode entender; portanto, a necessidade e a impossibilidade das coisas não estão fora das coisas e devem ser buscadas em suas próprias idéias e há que se examinar se podem ser entendidas ou, melhor ainda, se podem envolver contradição. De fato, denominamos necessário apenas aquilo que é necessário por si mesmo, ou seja, aquilo que possui dentro de si a razão de sua existência e de sua verdade, como, por exemplo, as verdades da geometria. Das coisas existentes somente Deus a possui, todo o resto que se segue desta suposta série de coisas (a saber, a harmonia das coisas, ou seja, a existência de Deus), é por si contingente e é necessário apenas hipoteticamente, ainda que nada aconteça por acaso já que tudo flui do destino, isto é, de certa razão da providência. Portanto, se a essência de uma coisa só pode ser concebida clara e distintamente (por exemplo, a espécie dos animais que possuem um número ímpar de patas, da mesma maneira o animal imortal), então, já se deve considerá-la possível, e sua idéia contrária não será necessária, embora, talvez, seja ela adversa à harmonia de todas as coisas existentes e à existência de Deus. E, por conseqüência, nunca haverá de ter lugar no mundo senão que seguirá sendo impossível por acidente. Pelo que se equivocam os que proclamam como absolutamente impossível (isto é, por si) aquilo que não foi, não é, nem será.
T. – Porém, não é verdade que tudo que será, há de ser absolutamente necessário, assim como tudo que já foi, o foi necessariamente? E, de qualquer maneira, não ocorre que tudo que é, é necessário?
F. – Pelo contrário, é falso, a menos que se possa entender que é reduplicativo e uma elipse com que, e tu concordarás, os homens estão familiarizados para não dizer duas vezes o mesmo. Pois o sentido é este: tudo que é, é necessário; se pode ser, então, é. Ou (substituindo necessário por sua definição), não se pode entender que aquilo que vai ser, se vai ser, que não vai ser. Se se omite a reduplicação, a proposição é falsa. Pois aquilo que será, todavia, pode ser entendido como aquilo que não será. E pode-se entender, todavia, que aquilo que não foi, como tendo sido. Isto é próprio do poeta elegante que imagina coisas falsas ainda que possíveis. A Argenis de Barclay é possível, ou seja, é imaginável clara e distintamente, ainda que seja certo que ela nunca tenha vivido ou nem creio que vá viver, a não ser que alguém consinta esta heresia: a de convencer-se de que no transcurso infinito dos tempos que restam por vir alguma vez há de existir todos os possíveis, e de que não se pode imaginar fábula alguma que, ainda em pequena medida, não venha a existir alguma vez no mundo. Ainda que concedamos isto, permanece que Argenis não terá sido impossível, ainda que nunca tenha existido. Os que pensam de outro modo, que deve ser necessário, devem suprimir a distinção entre o possível e o verdadeiro, entre o que é necessário e o que é contingente e, uma vez deformado o significado das palavras, opor-se ao uso do gênero humano. Portanto, os pecados e condenações e as demais séries de coisas contingentes não são necessárias ainda que possa seguir de uma coisa necessária, isto é, da existência de Deus ou harmonia das coisas. Ora, o que nunca ocorrerá ou ocorreu ou o que não se pode entender que exista em harmonia das coisas simplesmente não pode ser entendido, ou seja, é impossível. Donde é evidente que não é impossível (isto é, que não há contradição nos termos) que Judas tenha se salvado, ainda que seja verdadeiro, certo, antevisto e necessário por acidente (ou seja, decorrente da harmonia das coisas), que ele nunca haverá de salvar-se.
T. – Este hábito difundiu-se entre todos os povos e línguas (e tem crescido devido a um equívoco universal), de modo que recebe o nome de “necessário” aquilo que certamente é, foi e será, e de “impossível” o contrário.
F. – Porém, isto ocorre devido à elipse daquela duplicação, quando, segundo demonstrei, a mesma coisa deve ser dita duas vezes – todas as pessoas estão inclinadas a omiti-la pelo aborrecimento que produz a repetição.
T. – Então, talvez, seja nesta fonte que devamos procurar a verdade e a razão daquele sofisma preguiçoso (logou argou lógu argú), ou mesmo sua solução, famoso em todos os lugares da terra, e que certa vez trataram torpemente de elaborar os filósofos da Antigüidade e que, agora, desejam exumar os maometanos (persuadidos por seus líderes como sendo benéfico em meio aos perigos da guerra e da peste): é inútil resistir, nada há que fazer pois o destino não se evita; aquilo que é negado pelo céu não pode ser alcançado, tampouco aquilo que é concedido deve ser conseguido pelo preguiçoso.
F. – Dizes bem, pois este argumento tão temível e de tanta eficácia nos espíritos é um sofisma que repousa na péssima supressão do caráter hipotético da causa ou da sua pressuposta existência. É verdade que tudo que será, efetivamente há de ser, mas, não necessariamente (no sentido de uma necessidade absoluta), isto é, faça ou não tu o que fizeres. Pois, o efeito não é necessário senão a partir da hipótese da causa.
T. – Tenho por hábito repreender aqueles que assim deliram: “Se está escrito que não evitarás o mal, insensato, então igualmente (acaso) tua estupidez, já que tu não podes dar-te ao trabalho de evitá-la. Ninguém está determinado a um fim sem os meios, ou seja, os meios da diligência ou ocasiões; há que se confiar unicamente na diligência e aproveitar as ocasiões quando se apresentam.” Porém, tu dirás, “todavia é certo que o que Deus prevê (isto é, tudo que vai ser) será.” Admito, porém, não sem os meios e, quase nunca, sem tua ação, pois raramente a fortuna se oferece àquele que dorme; de fato, as leis foram escritas antes de tudo para os que velam. Portanto, posto que não é garantido se o decreto te é favorável ou adverso, age, em conseqüência, como se te fosse favorável ou, melhor ainda, age como se nada houvesse sido decidido, já que não podes direcionar tuas ações ao que é desconhecido. E por isso, se fazes o que te corresponde, não te será prejudicial perante Deus o que fatidicamente ocorrerá, ou seja, segundo a harmonia das coisas. Toda a discussão sobre a presciência, o destino, a predestinação e o fim da vida não nos auxilia a conduzir nossa vida. Tudo deve ser feito da mesma maneira, mesmo se não podemos pensar a respeito. Se alguém ama firmemente a Deus, indicará através deste próprio ato que fora predestinado desde toda eternidade. Portanto, podemos ser predestinados se desejarmos (e o que mais podemos querer ou exigir?) ainda que o desejemos em virtude da graça.
F. – Nada é mais verdadeiro. Oxalá pudessem os contestadores se convencer disso!
T. – Permanece essa questão: Deus quer ou não quer os pecados? Em princípio parece que Ele quis os pecados, já que estes existem. Deus, na verdade, não sofre devido à existência alguma porque não pode, em absoluto, sofrer. Portanto, tampouco sofre pela existência dos pecados. Porém, que não sofra pela existência de uma coisa não significa que não queira que ela exista. Assim deve-se dizer que nada é indesejável a Deus, exceto aquilo que não existe em absoluto (a não-existência daquilo que, de fato, pode-se afirmar, que Lhe agrada). Porém, deve ser dito que quando nos deleitamos com a não-existência de algo nós não a desejamos; e isso devido às definições que tu mesmo aduzistes.
F. – Tua conclusão é correta. Se não se entende que os próprios pecados existem por si, devemos dizer que Deus não os quer. Se existem porque assim o exige a harmonia das coisas, deve-se afirmar que Deus os permite, isto é, nem os quer, nem não os quer.
T. – Não obstante parece querê-los, pois a harmonia das coisas é agradável a Deus e a existência dos pecados provém da harmonia das coisas. Porém, segundo tua definição, queremos aquilo cuja existência nos deleita. Portanto, deve-se dizer que Deus quer os pecados.
F. – Este raciocínio é enganoso: ainda que a harmonia seja agradável, todavia, isso não significa que dela procede tudo o que é agradável. Se o todo é agradável, não significa que suas partes também sejam. Embora a completa harmonia possa ser agradável, todavia, as próprias dissonâncias não são agradáveis a despeito de que se as intercale segundo as regras da arte. Porém, tudo que é desagradável em si retira, ou mais precisamente, é abolido tão logo incremente o deleite do todo. Nesta mescla a dissonância transforma-se, pois, por compensação, o desacordo não é nem bom nem mau, o desagradável é permitido; somente o todo é agradável; somente a configuração do todo, por assim dizer, é harmonia. Deus se deleita com a beatitude existente dos eleitos, ao passo que não sofre pela beatitude perdida dos condenados, porque Ele nada sofre, devido ao fato da dor ter sido removida pela compensação da harmonia universal.
T. – Satisfizeste-me muito mais do que eu esperava acerca da maior dificuldade e demonstraste (o que até agora quase ninguém o havia feito) que é razoável dizer que Deus nem quer nem não quer, mas sim que permite a ocorrência dos pecados.
F. – Não resta questão alguma a tratar?
T. – Prevejo o que há de dizer acerca do autor do pecado.
F. – Evidentemente não é Deus, senão o homem ou o diabo são os únicos que querem o pecado, isto é, os que se deleitam com o maldade.
T. – Assim está bem: isto é, deleitam-se com a maldade. Pois de outro modo poder-se-ia objetar que também o homem ou o diabo simplesmente permitem o pecado, que fazem o que corresponde a sua situação e que simplesmente toleram o dano que se apresenta em suas vidas e à de outros. Porém, isto não se pode dizer do pecado mortal, no qual o ódio contra Deus, isto é, contra o bem universal, é a fonte de deleite (por isso, o deleite é pelo oposto do bem, isto é, o pecado). Porém, que ocorre com aquele que comete um pecado venial, mais por imprudência que por maldade? Não diremos que tais pecados são permitidos?
F. – Nem mesmo neste caso, porque permitir é, segundo a definição de permitir acima exposta (que é nem querer nem não querer, mas, conhecer), que é o que falta ao pecador devido a seu erro: ele quer o que é propriamente pecado, ou seja, o ato; não quer nem permite o pecado porque o ignora. Em resumo, Deus permite os pecados porque sabe que os pecados que permite não vão contra o bem comum senão que esta dissonância se compensa de outro modo; porém, o homem que comete pecado mortal sabe, na medida em que pode julgar por si mesmo, que isso que faz vai contra o bem comum e não pode ser reconciliado exceto por seu próprio castigo; como odeia este castigo e, não obstante, quer o ato, é necessário que odeie o bem comum ou governo do mundo e, a um tal grau, que comete pecado mortal.
T. – Satisfizeste-me por completo e de um modo excelente absolveste do pecado a vontade de Deus. Para resumir o que disseste, pois se pecamos porque podemos e queremos fazê-lo, e se a causa de nosso poder provém ou bem de fatores inatos ou bem dos recebidos (posto que o inato procede dos pais, e os recebidos, dos alimentos), ambos procedem, portanto do exterior. Por outra parte, se o intelecto é a causa do querer e o que é percebido é a causa do intelecto, o objeto é a causa do que é percebido e a condição do objeto é determinada por coisas exteriores; por conseguinte, tanto o poder como a vontade de pecar procedem do exterior, isto é, do presente estado de coisas. O presente estado de coisas do precedente, o que procede de outro anterior etc, assim sucessivamente. Portanto, o presente estado procede da série de coisas, as séries de coisas da harmonia universal, a harmonia universal das idéias eternas e imutáveis. As idéias contidas no intelecto divino existem por si sem nenhuma intervenção da vontade divina, pois Deus as entende não porque quer, mas porque Ele existe. Ora, os pecados não são agradáveis devido a sua própria harmonia e não serão permitidos pela vontade divina exceto em consideração de uma outra harmonia, ou seja, a harmonia universal, que não poderia existir de outro modo.
F. – Que mais tens a objetar?
T. – Não pouco, de certo, pois ainda não escapamos de todas as dificuldades. Pois, que importa conciliar os pecados com a bondade divina se não podem ser reconciliadas com nossa liberdade? Em que nos beneficia absolver a Deus se com isso absolvemos aos maus? Com que vantagem eximimos a vontade divina se extinguimos toda vontade? Pois, imploro, que é a liberdade humana se dependemos das coisas externas, se estas são o que nos fazem querer, se impera certo encadeamento fatídico não somente em nossos pensamentos, mas, nas mudanças de direção e nas conjunções dos átomos?
F. – Peço-te que não te enfureças com uma opinião entendida incorretamente e formulada com pouca destreza. Tu mesmo propuseste e, antes concedeste, que nada é sem razão suficiente. E que, portanto, haverá certa razão suficiente também para o próprio ato de querer. Ou bem essa razão estará contida no próprio ato (portanto será o Ser em si, isto é, Deus, o que é absurdo) ou bem deve-se buscar a razão suficiente fora do próprio ato. Portanto, para que possamos encontrar a razão suficiente do ato de querer devemos definir o que é querer. Que é, pois, querer algo?
T. – Deleitar-se com a existência de algo, tal como o definiste, seja percebendo efetivamente algo como existente, seja imaginando a existência de algo não existente.
F. – Porém, o deleite é perceber a harmonia, segundo nossa definição anterior; assim, nada queremos exceto o que nos aparece como harmonioso. Mas, aquilo que pode aparecer como harmonioso depende daquele que percebe e da disposição tanto do objeto como do meio. Por isso, ainda que esteja em nosso poder fazer o que queremos, não está, todavia, em nosso poder querer o que queremos, mas sim apenas querer aquilo que percebemos ser agradável ou o que julgamos como bom. Pois, julgar ou não julgar algo como bom não está em nosso poder, pois ninguém, ainda que rompa com a alternativa de querer ou não querer, logrará não crer sem razões o que crê. Portanto, já que a opinião não está no domínio da vontade, tampouco a vontade estará no domínio da vontade. E suponhamos que queremos porque queremos. Por que queremos querer? É por outra vontade ou ao contrário, por nada, ou seja, sem razão?
T. – Não tenho que responder a teu argumento, mas tampouco tu à minha objeção de que eliminamos o livre arbítrio.
F. – Admito, se com alguns autores assim o defines: o poder para agir; também, para não agir dados todos os requisitos para agir e tudo sendo igual fora e dentro do agente.
T. – Como? É defeituosa esta definição?
F. – Completamente, a menos que a desenvolvamos. Algo (neste caso a ação) não existe ainda que existam todos seus requisitos em que difere de algo definido que não existe ainda que sua definição exista ou, o que é a mesma coisa, que simultaneamente é e não é? Se algo não existe certamente é necessário que algum requisito esteja ausente porque uma definição não é senão a enumeração dos requisitos.
T. – Há que corrigir, pois, a definição: o livre arbítrio é o poder para agir ou não agir dados todos os requisitos para atuar, a saber, os requisitos externos.
F. – Assim, observar-se-á que, ainda que estejam disponíveis todos os requisitos para ação, posso, não obstante, desprezar o ato se, de fato, não desejo agir. Nada é tão verdadeiro, nada me é tão pouco desfavorável. Aristóteles definiu o espontâneo assim: quando a origem do ato está no agente; e o livre é o espontâneo com escolha; donde um ser é mais espontâneo quanto mais o ato flui de sua própria natureza e quanto menos é alterado está pelas coisas externas. E é mais livre quanto mais é capaz de escolha, ou seja, quanto mais entende com espírito puro e tranqüilo. O espontâneo advém do poder; a liberdade, do saber. Mas, assumimos que é impossível não querer o que é bom e que estando a vontade disponível ao mesmo tempo que o conhecimento dos recursos, seria impossível não agir. Nada, portanto, é mais indigno que querer transformar a noção do livre arbítrio em não sei que inaudito e absurdo poder de agir ou não agir sem uma razão, tal que ninguém em seu juízo perfeito desejará para si. Para salvaguardar o privilégio do livre arbítrio basta que nos coloquemos na encruzilhada da vida de modo tal que não façamos senão o que queremos, e que não possamos querer exceto o que cremos ser bom; porém, por um amplo uso da razão somos capazes de encontrar algo que devemos considerar bom: assim teremos menos motivos para nos queixarmos da natureza que se nos houvesse sido dado aquele monstruoso poder de uma certa irracionalidade racional.
T. – Existem, todavia, homens que afirmam possuir uma liberdade tal que são capazes de fazer ou desprezar algo, com pleno conhecimento e deliberadamente, sem razão alguma (por capricho).
F. – Atrevo-me a afirmar que se enganam ou são enganados. O prazer que se obtém ao obstinar-se e do semblante franzido (apenas isso, nunca a vontade somente) é praticamente uma razão.
T. – Porém, mesmo que eu suponha que estou prestes a fazer um gesto com minha mão, não posso alternativamente incliná-la para aqui ou para lá?
F. – Podes incliná-la para onde queiras.
T. – Então, que razão existe para que agora, como tu vês, a incline mais à direita?
F. – Não duvides de que subjazem certas razões sutis. Por exemplo, primeiro apresentou-se ao teu espírito agir assim porque inicialmente te chegou aos sentidos; talvez tua mão esteja mais acostumada a esta direção ou ao incliná-la em outra direção fosse incômodo e te agradou fazê-lo nesta, tais e tão variadas são as minúcias das circunstâncias que não se pode descrevê-las.
T. – Se tu fosses um anjo, ou mesmo Deus, e predissesse a direção em que inclinaria minha mão, imediatamente a inclinaria na direção oposta e, contra o desejo do profeta, afirmaria minha liberdade.
F. – Não por isso serias mais livre pois, em conformidade contigo, o próprio prazer da contradição é praticamente uma razão; de modo que se aquele profeta é infalível, ainda que não possa fazer-te a previsão e sabia que tu haverias de agir contra a predição, não obstante, ainda que em silêncio, anteviu a ação, ou inclusive, sem que tu saibas há de vaticinar isto na presença de uma terceira pessoa.
T. – Então, não pode predizer-me a verdade? Porém, por que não poderia se a conhece de antemão? Pois qualquer um pode dizer o que sabe a qualquer ouvinte. Mas, se eu fizer o contrário do que ele mesmo disse, em conseqüência não supôs de antemão o que eu iria fazer, o que é contra a hipótese. Portanto, ou bem se suprime a presciência ou bem a liberdade.
F. – Esta sutileza é engenhosa, porém, com ela só se conclui isto: o espírito que tivesse uma natureza tal que quisesse e pudesse fazer ou querer o contrário do que qualquer um pudesse predizer, pertence ao número de seres que é incompatível com a existência do ser onisciente ou harmonia das coisas e, assim, é algo que não foi, não é, nem será.
T. – Porém, que dizes daquela famosa expressão: video meliora proboque deteriora sequior?
F. – Nada, senão que é um absurdo que não se entenda tal expressão corretamente. Medea, a quem, segundo Ovídio, pertencem essas palavras, quis dizer o seguinte: ela vê a injustiça do seu ato quando assassina seus próprios filhos, contudo, experimenta o prazer da vingança como um bem maior que o mal do crime. Ou, em poucas palavras: ela peca contra sua consciência. Portanto, “melhor” e “pior” empregam-se nesse verso por “justo” e “vergonhoso”. Ora, disto se pode provar que ela não imaginará escolher aquilo que é absolutamente pior. Aquele que opine o contrário subverte todos os princípios morais e nem sequer pode dizer que é querer.
T. – Quase me convences.
F. – Oh! Quão insensatos somos quando desdenhamos os privilégios da natureza e de Deus e postulamos quimeras desconhecidas e não nos contentamos com o uso da razão, verdadeira raiz da liberdade; sem o poder da irracionalidade não nos consideramos suficientemente livres. Como se não fosse a suprema liberdade empregar o próprio intelecto e a vontade do modo mais perfeito e, portanto, obrigar o intelecto a reconhecer a realidade, a vontade ser compelida pelo intelecto a abraçar as genuínas verdades, ser irresistível à verdade, aceitar os puros raios dos objetos não refratados nem empalidecidos pelo véu das desfigurações. Na ausência destes, nos é impossível errar com pleno conhecimento e pecar voluntariamente, tal como a um espírito atento e com os olhos abertos, livre de todo defeito, é impossível não ver a justa distância e tamanho, em um meio transparente iluminado, um objeto colorido. Certamente a liberdade de Deus é suprema ainda que não possa errar na eleição do melhor e a liberdade dos anjos bem-aventurados intensifica-se quando deixam de ser falíveis. A liberdade, pois, depende do emprego da razão: na medida em que esta seja pura ou corrompida avançaremos, ou retamente pelo caminho real dos deveres ou cambalearemos por veredas desérticas.
T. – Portanto, todo pecado, pois, provém do erro.
F. – De fato.
T. – Portanto, todos os pecados devem ser desculpados.
F. – De nenhum modo, pois, como uma fresta de luz que se filtra em meio das trevas, existe em nós um modo para evitar o pecado, mas apenas se desejarmos utilizá-lo.
T. – Porém, por que uns desejam e outros não?
F. – Porque aqueles que não desejam, nem sequer têm a idéia de empregar esse meio com proveito; ou se têm a idéia, esta se encontra em sua alma como se nela não estivesse, ou seja, sem reflexão ou atenção, de modo que vêem sem ver e ouvem sem escutar. Aqui se encontram as origens da recusa da graça ou, como a denomina a Sagrada Escritura, da obstinação. Quem de nós não ouviu mil vezes aquele famoso dito: dize porque ages assim, ou considera o fim, estejas consciente do que fazes. E, contudo, é seguro que mediante apenas um desses pensamentos, uma única dessas fórmulas corretamente percebida e fixada firmemente perante o espírito com uma severa prescrição de algo assim como leis e castigos, cada homem, com um golpe de vista, por uma instantânea metamorfose, se transformaria em infalível, prudente e abençoada, muito além dos paradoxos do sábio estóico.
T. – Assim, não acontece, conforme sua última explicação, que toda pessoa má, em última instância, seja considerada infeliz, porque não atentou para o caminho da felicidade que se apresenta tão fácil e disponível?
F. – Certamente.
T. – E, não são dignos de compaixão?
F. – Não posso negar.
T. – E não devem sua maldade ao infortúnio?
F. – De fato, é manifesto que a razão última da vontade reside fora daquele que quer. E tem sido demonstrado que tudo isso finalmente reverte à série das coisas ou harmonia universal.
T. – O mesmo vale para os insanos?
F. – Quase, porém não totalmente. Os insanos, como os ébrios ou os que dormem, não podem reconhecer-se em si mesmos e pensar: dize porque ages assim, com toda prudência, mesmo se quisessem. E, se isto não lhes pode vir ao espírito, lá subsistiria. Porém, os loucos, os que divagam, os maliciosos, utilizam suas mentes lucidamente ainda que não com o propósito das coisas mais elevadas; deliberam acerca de qualquer coisa antes que da felicidade. Com os insanos é uma enfermidade, e certa matéria perniciosa para os nervos e a alma, algo semelhante à insônia. Outra é a razão que perverte o raciocínio dos loucos e dos maus; uma certa razão inferior arraigada no temperamento, na educação, no hábito, perverte a razão superior: a universal. Sem dúvida, os maus parecem tão estúpidos aos anjos como os estúpidos a nós.
T. – Ao menos serão semelhantes àqueles que, como se diz, nasceram quatro dias após a lua nova, aos mal-educados, aos pervertidos pelas más companhias, aos arruinados por um mau matrimônio, aos embrutecidos pela adversidade. Eles não podem negar que são culpados, mas, encontram motivo do que se lamentar por suas vidas desesperadas: do azar, dos homens.
F. – Assim é em absoluto, inclusive é necessário que assim seja: ninguém se faz o mal voluntariamente, de outro modo seria mau antes mesmo de fazer-se o mal.
T. – Porém, agora, realmente precisamos ter todo nosso ânimo, um peito valoroso; estamos em um momento supremo; chegamos, sem perceber, ao ponto culminante da dificuldade; se aqui não te abandona a fortuna, terás vencido para sempre. Pois aqui está o obstáculo inevitável que se ergue perante nós por mais que aparentemente seja justa a queixa dos condenados: que nasceram, foram trazidos ao mundo, deparam-se com homens ou em determinadas circunstâncias, e que não puderam não sucumbir; que tiveram a mente prematuramente ocupada com pensamentos viciosos, que as circunstâncias favoreceram o mal, que estas os estimularam e que estiveram ausentes as circunstâncias que os libertariam, que preservariam, como se a fatalidade estivesse a conspirar suficientemente para a perda dos infelizes. Se alguém houvesse formulado advertências saudáveis, se a atenção e mesmo a própria reflexão não lhes houvessem faltado, o espírito da sabedoria que diz “porque faz isso?”, “considera o fim” e o dom máximo da graça que somente é corretamente percebido quando estamos conscientes. Que injustiça que no sonho comum alguns estejam conscientes enquanto os outros são deixados ao sacrifício! Se era necessário que perecessem tantas criaturas, se a razão do mundo não subsistiria de outro modo, ao menos os infelizes fossem escolhidos por sorteio!
F. – Isto também ocorreu, pois é o mesmo que algo ocorra devido ao destino ou pela sorte, ou que suceda a bem da harmonia universal.
T. – Rogo-te que não me interrompas até ter ouvido tudo. Pois, que crueldade quando o causador deste infortúnio o contempla imperturbável ou quando um pai que cria uma criança má, as educa pessimamente, deseja puni-la e sendo ele mesmo passível de punição. Os condenados haverão de mal-dizer a natureza das coisas que é fértil apenas para arruiná-los; haverão de mal-dizer a Deus, que é feliz com a miséria dos demais, a si mesmos por não extingui-la; à serie do universo que também os envolve; finalmente haverão de mal-dizer àquela própria possibilidade das idéias, eterna e imutável, fonte primeira de seus males; da harmonia universal enquanto nela está determinada a existência das coisas. E daí, dentre tantos possíveis nenhum outro estado do universo emerge exceto aquele que contém sua miséria, tanto que a felicidade dos demais lhes é, por certo, mais notória.
F. – Falas muito tragicamente, mas, não com igual exatidão. Darei uma demonstração com alguns sinais, ou melhor, mediante um raciocínio preciso, se Deus, a quem isto diz respeito, der-me forças e ânimo. Por isso, quão vaga é esta queixa pois podes julgar a partir disso: pode ser considerado pelo condenado, não por aquele que é passível de condenação, embora de antemão saiba tudo que o condenado saberá. Pode o tempo por si mesmo, imploro-te, transformar o injusto em justo se nada se altera? Penso que não, pois a competência não pertence ao tempo mas sim às coisas que transcorrem no tempo. Portanto, se é injusta a queixa do que se vai condenar (que sabe tudo o que sabe aquele já condenado), também será injusta a queixa do condenado. Portanto, suponha um homem que é passível de condenação. Apresenta-lhe a seus olhos e a seu espírito o inferno em todo seu horror e abismo, mostre-lhe o canto ao qual está destinado por seus tormentos eternos, caso atue de tal modo. Poderia, ainda com vida e isto vendo, queixar-se de Deus ou da natureza das coisas, como causas de sua condenação?
T. – Certamente não poderá pois imediatamente se pode responder que se quiser será capaz de não ser condenado.
F. – Isto é exatamente o que eu desejava. Suponhamos que este homem, todavia, persista e que (por hipótese) seja condenado. Não poderia, então, replicar com alguma aparência de justificativa às mesmas queixas que acabas de rejeitar? Não poderia imputar seu infortúnio a outro antes que a sua própria vontade?
T. – Refutaste-me, porém, não me satisfizeste.
F. – Farei de modo que uma vez percebido claramente o problema também possas reconhecer que te satisfiz.
T. – Confesso que aquele passível de condenação atribuirá tudo à sua própria vontade, porém, imputará sua vontade sua própria fortuna, isto é, a Deus ou pelo menos, como tu desejas, à natureza das coisas.
F. – Antes mencionei que como o contrário implica contradição ninguém se faz mal voluntariamente, de outro modo seria mau antes da ocorrência do ato. Ninguém é causa voluntária de sua vontade, pois, aquilo que tu desejas querer tu já o deseja, como diz a regra jurídica: aquele que é capaz de fazer o que pode, já pode. Se é possível, pois, aceitar estas escusas, deve-se remover o castigo da natureza das coisas; ninguém será mau, ninguém deverá ser castigado, ninguém estará despojado de uma desculpa.
T. – Por quê?
F. – Por quê? Não por outro motivo senão porque em todos os julgamentos em que se deve aplicar uma pena será suficiente para condenar, reconhecer uma vontade muito má e deliberada, venha de onde vier. Que loucura é esta dos críticos da justiça divina que, para se defenderem do castigo, querem ir além da vontade conhecida do criminoso, ou seja, querem ir até o infinito.
T. – Convenceste-me que aos condenados não lhes resta nem sombra de desculpa, nem que tenham motivo do que se queixar. Todavia, eles têm uma razão pela qual podem se indignar, ou melhor, uma razão por que podem se queixar, mas nada têm de quem possam se queixar; têm a ira de um cachorro contra a pedra; a dos tolos jogadores de dados contra a fortuna; dos desesperados contra si mesmos, tal é sua ira contra a harmonia universal, que é consistente com a própria natureza das coisas (ou seja, com as idéias) e o autor deste curso das coisas. Ira tão completamente tola como a de alguém que tendo contado mal, examina o resultado das operações e percebe que o
resultado é mínimo, e se indigna contra a aritmética e não contra si mesmo e lamenta-se em vão, que três vezes três não são dez senão nove (pois a harmonia das coisas também depende dessas proporções necessárias). Esses têm, pois, uma ira sem objeto, uma dor sem alívio, finalmente, uma queixa, que não podem tornar aceitáveis para si mesmos nem tampouco abandonar – certamente acréscimos notáveis que contribuem para incitar aquela furiosa infelicidade sobre a qual se baseia a condenação.
F. – Aquilo é importante: a dor para eles é sem alívio e quase, se me permite dizer, agradável. Os condenados não podem provar para si mesmos suas próprias queixas. Isto era, por último, o que eu ia afirmar para convencer-te plenamente. Porém, acrescento que nunca em absoluto, desde toda eternidade, estão incondicionalmente condenados; embora sejam passíveis de condenação sempre podem ser libertos, embora nunca desejem sê-lo. Portanto, suas consciências sempre protestam mas eles não podem, a tempo algum, mesmo queixando-se consistentemente, protestar sem contradição.
T. – Falas de um modo misterioso.
F. – Ou, paradoxalmente, como os outros prefeririam dizer.
T. – Não importa, estamos sós, retira o véu.
F. – Bem, se notares, perceberás que já o retirei. Recordarás que até há pouco estivemos de acordo acerca da natureza do pecado mortal, isto é, do motivo da condenação.
T. – Rogo-te que repitas e aplique à presente discussão.
F. – Que te respondi, se não o esqueceste, quando me perguntaste pela razão da condenação de Judas? Vale a pena recordar com as mesmas palavras pois são mais exatas. Perguntavas pela razão da condenação. Respondi: “condição em que morreu, isto é, o ódio a Deus em que ardia ao morrer, no que consiste a natureza do desespero. Isto é suficiente para amaldiçoar-se. Pois quando no momento da morte, enquanto abandona o corpo, a alma não padece de novas sensações exteriores, apóia-se apenas em seus últimos pensamentos; pelo que, não muda exceto que agrava a disposição em que se encontrava ao morrer; ora, do ódio a Deus, isto é, ao Ser felicíssimo se segue a dor máxima, pois o ódio consiste em sofrer com a felicidade do outro (como amar é alegrar-se com a felicidade do amado), assim, é a máxima dor perante a máxima felicidade. A máxima dor é a miséria, ou seja, a maldição. Donde aquele que odeia a Deus ao morrer, amaldiçoa a si mesmo.” Ignoro se estas palavras muito se afastam de uma demonstração, pois, representam a razão da magnitude da miséria a partir do ódio e da magnitude do ódio a partir do seu objeto.
T. – Porém, aqui ampliaste um pouco o que disseste, que sempre há quem se vá a condenar, nunca condenados.
F. – Eu entendo assim: do mesmo modo que aquilo que é móvel nunca permanece no mesmo lugar senão que sempre tende a um outro lugar, assim também aqueles nunca são condenados (de modo que, ainda que queiram, não podem deixar de ser passíveis de condenação) mas sempre passíveis de condenação, isto é, eles mesmos se condenam freqüentemente.
T. – Quero que proves.
F. – Prová-lo é facílimo: se alguém se condena a si mesmo pelo seu ódio a Deus, a continuação (ou mais precisamente, pelo aumento) do ódio, estenderá e aumentará sua própria condenação. Assim como os bem-aventurados, uma vez admitidos por um incremento contínuo, que se prolonga ao infinito, em Deus, isto é, na harmonia universal e na razão suprema, após haverem se apoderado disso como se a um único golpe de vista, não obstante, experimentam o deleite incessantemente devido à infinidade de distintas reflexões na multiplicidade de sua alegria, porque não há pensamento e, portanto, prazer sem novidade e progresso perpétuos; do mesmo modo aqueles que odeiam furiosamente a natureza das coisas, quanto mais avancem no conhecimento das criaturas, devido a um diabólico resultado da ciência, tanto mais irritados continuamente estarão por um novo motivo de indignação, de ódio, de inveja; para dizer em uma palavra, de raiva.
T. – Adornaste muito bem tua hipótese, porém, permita-me que te faça duas perguntas.
F. – Se te agrada também podes fazer-me cem.
T. – Uma é secundária; a outra, fundamental. Tu disseste que a miséria, tanto como a felicidade, intensifica-se continuamente. Porém, não entendo como pode se intensificar a visão da essência divina, porque se é da essência é exata, e se é exata não pode se intensificar.
F. – O reconhecimento pode se intensificar, mesmo se é exato, não por uma novidade material senão pela reflexão. Se tens perante ti nove unidades terás compreendido a exata essência do nove. Porém, ainda que possas ter a matéria de todas as propriedades não terás, todavia, a forma, ou seja, a reflexão, pois ainda que três vezes três, quatro mais cinco, seis mais três, sete mais dois, sejam nove e tantas outras mil combinações, por isso de modo algum pensas na essência do nove. Nada acrescento sobre a combinação do nove com outras unidades fora do próprio nove, pois, não só varia a forma senão também a matéria do pensamento e essas são propriedades do total a partir de um e outro número, mais que propriedades do nove. Isso não ocorre com relação a Deus pois como Ele tem tudo em Si não pode ser comparado com nada exterior a Ele. Darei um exemplo de uma coisa finita com propriedades infinitas sem recorrer a comparação com coisas exteriores. Aqui tens um círculo; se sabes que todas as linhas que vão do centro à circunferência são iguais, creio que compreendeste com bastante lucidez sua essência. Porém, não por isso compreendeste também os inumeráveis teoremas, pois podem ser inscritos no círculo tantas figuras diversas e regulares (isto é, mesmo que já não estejam desenhados, lá já estão) quantos números há, portanto, uma infinidade delas, nenhuma das coisas deixará de proporcionar ao investigador um enorme material para teoremas.
T. – Reconheço que muitas vezes intrigou-me o tipo de prazer que pode haver na visão beatífica, quando a alma está como paralisada e atordoada em uma única fixa contemplação. Felizmente tu dissipaste essa nuvem e reconciliaste toda a novidade. Porém, perguntei isto incidentalmente. A outra pergunta, que havia reservado para a investigação fundamental é esta: donde procede aquele divórcio das almas pelo qual algumas ardem no amor a Deus e outras se entregam a um ódio que lhes resulta funesto? Por que há este ponto de separação e, por assim dizer, esse centro de divergência? Posto que provavelmente se pode crer que aquele passível de condenação é por uma aparência exterior semelhante àquele que vai ser salvo, não é raro tomamos um pelo outro.
F. – Pedes coisas imensas, amigo, que a filosofia vacila em responder.
T. – Todavia, tenta, pois à razão é permitido avançar na medida em que se basta a si mesma; e, ainda que não sejas um iniciado, até agora em todo nosso diálogo, não tocaste a revelação com tuas mãos profanas.
F. – Escuta o que finalmente logrei formular depois de muita meditação. Deves saber que em uma república, como no mundo, há, em suma, dois tipos de homens: uns que estão satisfeitos com o estado presente das coisas e outros que são hostis a tal estado. Não se trata de que os primeiros, satisfeitos e em paz, não empreendam algo todos os dias; eles lutam para vencer, aprender, ter mais fortuna, amigos, poder, prazeres, fama, pois, de outro modo diríamos que estão paralisados e não satisfeitos. Mas se vêem seus projetos frustrados, nem por isso dirigem seu ódio à forma da república que obstaculiza seus propósitos, nem concebem planos de modificar as coisas, senão que com o espírito tranqüilo prosseguem o curso de suas vidas, nem tão perturbados como houvessem de espantar uma mosca com um sopro. Essa exata distinção entre bons e maus cidadãos deve aplicar-se, com rigor ainda maior, à república universal cujo governante é Deus.
T. – Por certo, pois, em uma república que não seja aquela ótima (que nas questões humanas deve ser uma desesperança) não se pode evitar, às vezes, que das próprias leis derive a miséria de alguns súditos. Contudo, é justo que estes pensem modificar essas leis porque lhes resulta necessário. Na república do universo, isto é, na melhor república cujo rei é Deus, só é infeliz aquele que quer ser.
F. – Exatamente. Portanto, no mundo jamais é justa indignação alguma. Nenhum movimento da alma (exceto a tranqüilidade), está isento de repreensão. Também desejar é um pecado, de modo que se pode sofrer se o desejo não se realiza e constitui um tipo de ira oculta contra Deus, para com o estado presente das coisas e a série da harmonia universal de que depende aquele estado.
T. – Porém, é impossível não sofrer quando não se obtém êxito.
F. – O que no corpo é impulso [conatus], na mente é inclinação; porém, há impulsos que vencem a outros e alguns são vencidos por impulsos opostos. Se um corpo se dirige do leste a oeste e, ao mesmo tempo, faz-se que retroceda na mesma linha com força igual de oeste a leste, permanecerá em repouso pela igualdade mútua dos impulsos contrários. Assim, também a inclinação e os movimentos iniciais não podem ser suprimidos, mas podem ser vencidos por inclinações contrárias de modo que percam sua eficácia. Portanto, quem vê frustrado seu desejo não pode senão lamentá-lo no momento. Porém, se está satisfeito com o governo do mundo não deve perseverar na sua aflição, pois considerará que o que existe é o melhor, não só para si mesmo mais sim para todo aquele que o reconheça e, portanto, tudo resulta bem para aquele que ama a Deus. Portanto, deve-se ter por certo que aqueles que estão desgostosos com o governo de Deus do nosso planeta (a quem lhes parece que Deus poderia ter feito melhor algumas coisas) e também aqueles que empregam, a partir da confusão das coisas (que, eles mesmos forjam), argumentos que favorecem ao ateísmo, são contra Deus. De fato, o que quer que possam acreditar ou afirmar, apenas a natureza e a condição das coisas lhes desagradam; odeiam a Deus embora aquilo a que odeiem não possam denominar “Deus”.
T. – Se filosofamos assim não seria lícito nos preocupar com a reforma das coisas.
F. – Ao contrário, não só será legítimo e permitido, senão necessário. De outro modo voltaríamos ao sofisma preguiçoso que havíamos rejeitado. Portanto, aquele que ama a Deus, isto é, a harmonia universal, está satisfeito com os fatos passados, pois como estes, de fato, não podem não ter ocorrido, é certo que Deus os quis e por isso são os melhores. Mas a respeito dos acontecimentos futuros (como não devemos julgar antecipadamente em que medida são certos para nós), deixa-se lugar livre para a diligência e deliberação de cada um e de sua consciência. Donde, se aquele que ama a Deus delibera a respeito de algum defeito ou de algum mal, alheio ou próprio, privado ou público, para suprimi-lo ou corrigi-lo, sustentará como certo, que não deveria ter sido corrigido ontem mas presumirá que deve ser corrigido amanhã. Digo que presumirá até que a prosperidade o abandone novamente e o contrário possa ser provado. Porém, esta frustração não haverá de fatigar ou abater em nada seus esforços com respeito ao futuro, pois não nos cabe prescrever prazos a Deus e somente terão prêmios os perseverantes. Portanto, aquele que ama a Deus considerará o passado como bom e se esforçará por melhorar o futuro. Somente aquele que assim sente chega à tranqüilidade da alma que buscam os filósofos sérios e à resignação de tudo em Deus, que buscam os teólogos místicos. Aquele que pensa de outro modo, ainda que também tenha nos lábios as palavras “fé”, “caridade”, “Deus”, “próximo”, não conhece a Deus, pois ignora que Ele é a suprema razão de tudo, nem O ama. Nenhum homem que ignora a Deus pode amá-Lo adequadamente; porém, pode odiá-Lo. Pois, odeia a Deus aquele que odeia a natureza, as coisas, o mundo; assim, pois, aquele que pretende que tudo seja diferente do que é, opta por um Deus diferente daquele que é. Aquele que morre satisfeito com o mal, morre odiando a Deus e como que empurrado ao abismo prossegue o caminho empreendido desde o início, os objetos externos já não mais o trazendo de volta. Fechado o acesso dos sentidos, alimenta sua alma, reduzida a si mesma, com o incipiente ódio às coisas e com a mencionada miséria e com relutância, indignação, inveja e displicência mais e mais crescentes. Quando a alma é reunida ao corpo, voltados os sentidos, ele continuamente encontra novo motivo de desprezo, de desaprovação, de ira, e tanto mais se atormenta quanto menos pode alterar e agüentar a torrente das coisas que o desagrada. Porém, a dor transforma-se de algum modo em prazer e os condenados se alegram em encontrar algo pelo que podem ser torturados. Assim como nas questões humanas os infelizes, ao mesmo tempo em que invejam os felizes, também buscam derrotá-los, com nenhum outro benefício do que se tornarem furiosos, mesmo se é bem tolo, do que pensar que são tanto mais livres a tornarem-se senhores das coisas e que transformaram a dor em uma grande harmonia ou aparência de razão. Na verdade, no caso dos invejosos, indignos e maus, o prazer está mesclado com a dor de um modo surpreendente, a saber, eles se comprazem e se deleitam com a opinião que possuem da própria sabedoria, que por isso sofrem com dor tanto mais intensa quanto o poder que consideram que lhes é devido, ou melhor, que nos outros lhes parece indigno. Aqui tens, pois, explicados aqueles assombrosos paradoxos. Não direi que ninguém é condenado exceto aquele que quer, mas nem que ninguém permaneça condenado, nem que ninguém é condenado exceto por si mesmo, pois os condenados nunca são totalmente condenados, sempre passíveis de condenação. São condenados por esta obstinação e esta perversão do apetite, por essa aversão a Deus, de modo que nada os alegra mais que ter do que se doer; nada mais buscam que motivo para encolerizar-se. Este é o grau supremo da loucura mensurável – é voluntário, incorrigível, desesperado e eterno. Portanto, o condenado mesmo se quisesse, nunca poderia usar aquelas queixas que antes lhes atribuímos e, assim, censurar a natureza, a harmonia universal e Deus como os autores de suas próprias misérias
T. – Deus imortal! Como alteraste seus paradoxos em eudoxos! Reconheço que os Santos Padres não eram hostis a este tipo de explicação. E a piedosa Antigüidade, mediante uma fábula simples, porém lúcida, compreendeu a índole dos condenados mais ou menos desta maneira. Um eremita, ignoro qual, embriagado pela profundidade das suas contemplações começou a lamentar-se seriamente pela quantidade de criaturas que vão à perdição. Dirige, pois, suas orações a Deus, declara a sinceridade de seu desejo e afirma: “Ó Pai! Podes contemplar com indiferença a perda de tantos filhos Teus? Ah! Perdoa e trazes de volta à Tua graça esses miseráveis demônios que arrastam consigo tantas almas ao inferno!” A quem vocifera deste modo o Onipotente responde tranqüilo com uma face serena que ilumina o céu e as tempestades: “Vejo, meu filho, a simplicidade de teu coração, compreendo plenamente a exuberância de teu afeto e inclusive afasto de mim todo obstáculo: assim farei tão logo possam aqueles me pedir perdão.” O eremita, em adoração, disse: “Bendito sejas, Pai de toda misericórdia, inesgotável fonte de graça! E agora, com Tua permissão, irei ao encontro daquele que causa a própria miséria e a de muitos – ele que, inclusive, ignora a felicidade deste dia.” Tendo chegado perante o príncipe dos demônios, seu anfitrião habitual, encontra-o e imediatamente afirma: “Ó tu tens sorte, ó dia afortunado em que se abre a porta da salvação que se encontrava cerrada para ti quase desde a origem do mundo! Vem agora e lamenta-te da crueldade de Deus perante quem a súplica de um miserável eremita em favor dos rebeldes de tantos séculos foi eficaz!” Ele, aparentando indignação, simulando ameaçar replicou: “E quem te constituiu em nosso representante? Quem determinou uma misericórdia tão tola? Hás de saber, néscio, que não necessitamos que tu intercedas, nem que Deus nos perdoe.” Eremita: Ó teimosia, ó cegueira. Rogo-te que cales e toleres que eu fale contigo. Belzebu: Vás-me dar, sem dúvida, uma lição. Eremita: Quão insignificante é o sacrifício de alguns instantes que gastarás em ouvir um pobre homem que deseja o melhor para todos. Belzebu: Que desejas, então? Eremita: Sabes que pleiteei a Deus tua salvação. Belzebu: Tu? Com Deus? Ó desgraça dos céus, ó infâmia do mundo, ó indignidade do universo! E este é aquele que governa as coisas, aquele que exige que os anjos estremeçam perante uma autoridade que se prostituiu perante esses vermes terrestres? Sobrevêm a ira e a fúria. Eremita: Ah, deixa de blasfemar logo agora que estás no limite da reconciliação. Belzebu: Estou fora de mim. Eremita: Volverás a ti quando souberes com quanta doçura de Pai aguarda cordialmente o retorno do filho. Belzebu: E é possível que queira a reconciliação quem tanto nos irritou com injúrias? É possível que se arrependa aquele que tanto nos ultrajou? Que reconheça seu erro e se submeta aquele que quer ser considerado como onisciente e onipotente? E tu? A que preço crês que faremos a paz? Eremita: Minha única súplica será a de que extinga a ira, enterre os ódios e afunde em um mar profundo a lembrança do passado. Belzebu: Com esta condição vai responder que estou preparado para amigar-me. Eremita: Sério? Belzebu: Não duvides. Eremita: Não estás a me enganar?. Belzebu: Vai e apresenta o caso. Eremita: Ó que felicidade, ó que dia sereno, os homens libertos, Deus bendito! Deus: Que me trazes com tais saltos de alegria? Eremita: O caso está concluído. Ó Pai, agora o reino, o poder, a salvação, a força, a honra e a glória são Tuas e de Teu filho Cristo, pois converteu-se aquele que nos acusava todos os dias, aquele que rugia noite e dia rogando nossa morte. Deus: Quê? Agregaste também a condição do perdão? Eremita: Aprovou-a. Deus: Tratas de não te enganar. Eremita: Volto para transmitir-lhe o que tem de cumprir. Deus: Porém, cuidado, estabeleçamos de antemão as palavras. Eremita: Eu a escreverei. Deus: Notifica àqueles que desejam ser perdoados que se obrigarão perante o meu trono com estas palavras solenes: “Confesso com a boca, reconheço com o coração que por minha malícia fui a causa de minha condenação, e esta haveria de ser eterna se Tua inefável piedade não houvesse dissipado minha insensatez; agora, tranqüilizada minha mente depois de perceber a diferença entre a luz e as trevas, prefiro padecer todos os males mais terríveis que retornar por uma desgraça renovada àquele estado em que a natureza das coisas não pode produzir nada mais ignominioso.” Eremita: Tenho a fórmula e agora irei, melhor, voarei. Belzebu: Tens asas? Eremita: O amor torna-me leve. Esta é a formula do pedido de perdão. Belzebu: Se permite-me que a leia. Porém, quando cumprir-se-á a condição? Eremita: Quando queiras. Belzebu: Como se eu pudesse vacilar. Eremita: Bem, vamos ao trono de Deus. Belzebu: Quê? Estás em pleno juízo? Tenho que ir a Ele ou Ele a mim? Eremita: Não brinques com assunto tão importante. Belzebu: Irá aquele que tem de pedir perdão. Eremita: Então, vamos. Belzebu: Louco. Eremita: Não tens tu que pedir perdão? Belzebu: É isto o que prometeste? Eremita: Quem pensaria outra coisa ainda que sonhando? Belzebu: Sou eu aquele que ofendeu? Converter-me-ei em suplicante daquele tirano? Ó nobre mediador! Peste de homem! Modelo de conspirador! Eremita: O que há? Belzebu: O veneno penetra-me os membros, e já se inflama o furor nas articulações; é preciso que um crime se some a outro, assim somos purificados. O enfurecido quer apenas uma vítima, o inimigo imolado. Agrada-Lhe arremessar seus restos ao vento e, dilacerada a carne do que vive, esfarrapada em mil partes, transformá-la em outros tantos sinais de meu suplício. A trombeta convoca aqueles destinados à ressurreição a extrair a carne. Eremita: Deus meu, ajuda-me! Belzebu: Abismos do pálido Averno e vós, lagos do Tenaro… Eremita: Desapareceu; agora respiro. Aonde irá este miserável? Suas últimas palavras são um indício. Ó desesperado! Ó inimigo de Deus, do universo e de si mesmo! Vai-te e que os malditos fiquem com sua deliberada loucura; porém, a Ti louvor, honra e glória, ó Deus meu, que te dignaste a mostrar tua piedade e justiça de forma esplendorosa aos seus servos. Removeste todas aquelas tentações e dúvidas que tentavam imputar-Lhe, injustiça e fraqueza. Agora minha alma repousa e espalha-se a luz de tua beleza. Assim falou nosso eremita e eu com ele.
F. – Pontuaste com um ato encantador a austeridade de nossa argumentação, ou melhor, a selaste com um epílogo. Pois agora, se não me engano, podemos terminar com segurança.
T. – Permita, todavia, mais uma pergunta. Reconheço que demonstraste que os condenados não estão aptos a (e não querem estar) deixar de queixar-se de Deus, do mundo, de coisa alguma. Só permanece esta questão: que Deus satisfaça os outros espíritos por este juízo insondável e satisfaça assim mesmo; e, ainda a partir do que discutimos parece-me que posso ver, como de longe, a maneira de concluir o assunto, prefiro, não obstante, escutar teu resumo.
F. – Todavia, de que alguém poderia se queixar? Pois, nem Deus, nem bem-aventurado algum seria bem-aventurado (melhor ainda, nem sequer existira) se a série das coisas não fosse como é.
T. – Confesso que ninguém pode se queixar, embora alguns possam espantar-se apenas com duas coisas: primeiro, por que a ordem do mundo não foi constituída sem a condenação de alguns? Segundo, por que as circunstâncias das coisas produz esta alma em vez daquela outra, nesta massa de carne em vez daquela, tornando-se infeliz, ou melhor, querendo ser infeliz?
F. – A primeira pergunta é simultaneamente muito fácil e muito difícil. É fácil se concordas com minha afirmação de que o que foi feito é o melhor e concorda com a harmonia universal, o que se mostra pelo efeito ou, como se diz nas escolas, a posteriori, pelo fato mesmo de que existe. Pois, tudo que existe é o melhor ou armonikotaton (armonikútaton, o mais harmonioso) e prova-se mediante uma demonstração ainda não refutada, porque a primeira e única causa eficiente das coisas é o espírito; a causa para que desperte o espírito, ou a meta coisas, é a harmonia; e o espírito mais perfeito é despertado pela harmonia suprema. Porém, se insatisfeito com este argumento, podes querer que a própria harmonia se revele (a causa de tantas coisas maravilhosas) e que te seja demonstrado a priori (que estava de acordo com a razão perceber esta harmonia no mundo), desejas uma coisa impossível para um homem que ainda não foi admitido nos mistérios da visão de Deus.
T. – Oxalá que o mundo possa persuadir-se disto tão claramente como tu provaste: o que quer que exista, se contemplas a totalidade das coisas, é o melhor. Por certo que se todos acreditassem nisso teríamos menos pecados; se sempre recordassem disto, não teríamos nenhum. Cada uma amaria ao Criador, tapar-se-ia a boca do ateísmo e obrigaríamos esses censores insensatos da providência, a calarem-se, que ouvindo uns poucos versos do poema se lançam a julgar de um modo injusto toda a melodia. Quase ignoram a infinidade de coisas e, por assim chamá-la, a expansão de mundos em mundos (pois o contínuo é divisível ao infinito). É impossível que um mortal ainda não purificado compreenda, com seu espírito a totalidade do canto; nem reconheça que estas dispersas dissonâncias particulares serão reintegradas em uma agradável consonância do universo; assim como dois números ímpares são combinados em um número par, de fato pertence à essência da harmonia que a diversidade discordante seja contrabalançada de um modo maravilhoso e como que inesperado na unidade. E aqueles que não só compõem música, mas também aqueles que compõem deliciosas histórias e que se denominam novelas consideram isto como um princípio da arte. Mas resta explicar a segunda pergunta: posto que as almas são em si mesmas muito semelhantes ou, como afirmam os escolásticos, diferem apenas pelo número, ou por certo grau e, em conseqüência, diferem apenas devido às impressões externas, qual a razão da diversidade dessa harmonia universal? Por que estas almas, melhor que aquelas, estão expostas a circunstâncias que hão de corromper sua vontade ou (o que é o mesmo), por que são colocadas neste tempo e lugar?
F. – A resposta parece difícil, porém, mais pelo modo tortuoso da tua indagação que pela natureza do assunto. Pois tocamos o espinhoso assunto do princípio de individuação, ou seja, da discriminação das diferenças só pelo número. Sejam dois ovos tão semelhantes entre si (ou da maior semelhança, conforme a hipótese) que nem mesmo um anjo poderia observar a diferença e, não obstante, quem negaria que diferem? Pelo menos no seguinte: que um é “este” (hoc), o outro é “este” (hoc), ou seja, por hecceidade ou porque são um e outro, ou seja, pelo número. Porém, o que desejamos quando numeramos ou quando dizemos “este”? (pois numerar é, de fato, repetir “este”). O que é “este”? Ou como ele é determinado? Que é senão a percepção do tempo e do lugar, ou seja, o movimento quer de uma coisa dada com respeito a nós, ou para uma coisa já determinada, ou o movimento de nossa própria mão ou dedo (através do qual apontamos) ou o movimento de uma coisa já determinada, como um bastão apontando para a coisa a ser mostrada? Estes são, portanto, os princípios de individuação, que te assombravam, fora da própria coisa: pois (a partir da hipótese da semelhança máxima) nem mesmo um anjo, ou, para dizer com audácia, nem mesmo Deus, pode apontar outra distinção entre aqueles ovos que esta: agora este se encontra no lugar A; aquele, no lugar B. Assim, para que os possa continuar os distinguindo, naquilo em que consiste a caracterização (isto é, uma determinação permanente) é necessário que os coloque onde nada os disfarce, que não se possa pintá-los, prender-lhes uma marca ou imprimir um sinal pelo qual deixem de ser semelhantes ou volte a colocá-los em um lugar imóvel onde também estarão em repouso, ou faças com que suas posições ou o recipiente que os contém, se são móveis, não possam se alterar e que os próprios ovos possam nele ser mantidos de modo tal que conservem sempre a mesma posição em relação às partes do recipiente, que estão impressas por certas marcas ou, por último, se estás prestes a deixá-los em completa liberdade, será necessário que sigas cada um com os olhos ou com as mãos ou com outro tipo de contato o movimento de um e de outro durante todo o tempo de sua trajetória, em todos os lugares.
T. – Dizes coisas assombrosas que, parece-me, os escolásticos não conheceram nem em sonhos, com as quais, não obstante, ninguém poderia discordar porque estão extraídas da prática da vida e porque os homens não raciocinam de modo diferente ao distinguir as coisas similares. Porém, que conclusão extrais daí com respeito às almas?
F. – Quê? Nada, exceto que também as almas (ou, como prefiro dizer, os espíritos) são inseparáveis, isto é, pelo lugar e pelo tempo. Uma vez afirmado este ponto, toda a dificuldade se desvanece. Pois, perguntar por que esta alma e não outra apresenta-se primeiro nestes lugares e nestas circunstâncias temporais (donde se origina toda a série da vida, da morte, da salvação ou da danação) e, por conseguinte, por que passa de umas circunstâncias a outras, a série das coisas exteriores a ela comportando-se assim, é perguntar por que esta alma é esta alma. Imagina que neste mesmo corpo (isto é, no corpo que está neste mesmo lugar e tempo) começou a existir uma outra alma no mesmo lugar e no mesmo tempo em que começara a existir a primeira; aquela alma a que tu denominas “outra” não será outra senão esta. Se alguém pode vir a se indignar por não ser filho de uma rainha ou, ao contrário, por sua mãe não ter dado à luz um rei, indignar-se-ia por não ser o mesmo; ou melhor, indignar-se-ia por nada, pois, tudo revelar-se-ia o mesmo e ele próprio, então um filho de rei, não sonharia que é, agora, filho de um camponês. Do mesmo modo, às vezes tenho pressionado aqueles que se indignam por Deus não ter removido instantaneamente Adão e Eva do mundo uma vez que pecaram (para que a culpa não se propagasse a sua posteridade) e não os houvesse substituído por um outro casal melhor. Pois, como fiz notar, se Deus houvesse feito isto, uma vez suprimido o pecado haveria de se produzir uma série completamente diferente de coisas, de diferentes combinações de circunstâncias, de homens, de matrimônios, de pessoas totalmente diferentes, e daí se o pecado houvesse sido suprimido ou extinto, nós mesmos não estaríamos no mundo. Portanto, eles não têm por que se indignar com o pecado de Adão ou Eva, muito menos pelo fato de Deus ter suportado o pecado, posto que devem imputar suas existências à conta desta tolerância dos pecados. Já vês até que ponto os homens se atormentam com problemas vãos, como se um bastardo pudesse irritar-se com o nobre pai nobre por este haver-se casado com uma mulher de condição inferior (ainda que os homens não estejam isentos de paixões similares, inclusive os mais insensatos) sem considerar que se o pai houvesse se casado com outra mulher, não teria ele vindo ao mundo, mas sim outro homem.
T. – Nada me resta a perguntar, nem do que me queixar, tampouco objetar. O único motivo de minha admiração é a inesperada clareza com a qual explicaste toda a questão. Recomendaria muitas de tuas conclusões aos teólogos se não temesse que os homens pudessem suspeitar que atuamos em conluio.
F. – Que sejam outros, então, que julguem acerca disso, mas apenas os que sejam probos e inteligentes, que prestem atenção, que aceitem o sentido das palavras que expus, que não deduzam um outro, que não imputem ao autor conseqüências distorcidas (às quais não penso nem mesmo em sonhos), que odeiem as ironias amargas, sinais de perturbação espiritual, que se inflamam de um zelo suficiente para vindicar a glória divina e o esclarecimento dos espíritos.
T. – Estou de acordo. Porém, ainda que tu te desviasses bastaria, para livrar-te da culpa, que nem mesmo as chicanas e a própria inveja possam prevalecer (o que seria herético) senão aquele assim fala, aquele que assim crê, ou que assim morre, será condenado e não deverá ser considerado como filho de nossa mãe comum, a Igreja ou, o que é o mesmo, como nosso irmão.
F. – Tenho plena confiança e, repleto de esperança, submeto-me à verdade universal, à Igreja, à república Cristã, ao consenso da Antigüidade e de nosso século e, finalmente, a qualquer homem que raciocine corretamente. Não posso impedir que me repreendam; rogo que não me prejulguem. De fato, espero que possam me ouvir, ou melhor, que me possam ler com atenção, e que todos reconheçam que tudo foi exposto com a maior simplicidade possível uma vez suprimida a impostura das palavras (que habitualmente perturbam o gênero humano mais que as próprias coisas) e que nada enunciei que todos em conjunto não tenham como reconhecer necessariamente. De qualquer modo, nada disse acerca de Cristo, dos auxílios do Espírito Santo e do concurso extraordinário da graça divina, questões que dependem da revelação divina, pois havíamos concordado que eu, enquanto catecúmeno, a ti iria expor a Teologia do Filósofo antes que tu, alternativamente, pudesse me iniciar nos mistérios revelados da sabedoria Cristã. Deste modo, Teófilo, que seja aliviado teu esforço de provar aquilo que confessei e que reconheço, tanto que a harmonia da razão e a fé possa ser evidente, e a loucura possa ser visível a todos que são ou arrastados pela ciência e rechaçam a fé, ou que envaidecidos pela revelação e odeiam a filosofia porque põe a nu sua orgulhosa ignorância.
T. – Louvo tua modéstia e reconheço haver colhido frutos desta conversação e alegra-me que tenhas dado com que tapar a boca daqueles que por meio da maior insolência não se comovem nem por respeito à Sagrada Escritura nem pelo consenso, a autoridade e os exemplos dos Santos Padres; aqueles que estão cheios de não sei que razões e cuja frivolidade tu mostraste com clareza luminosa. Virá o tempo (assim vaticino e imploro) em que terei em ti um instrumento adequado para grandes coisas, a fim de que quando nos ocuparmos também das questões intrínsecas da fé, pela luz da reta razão toda escuridão e sombras das dificuldades mais vãs, que perturbam as almas e as seduzem e extraviam, possam ser afugentadas como quando de um exorcismo. Adeus.
Fontes da tradução:
Olaso. Ezequiel de. Trad.: Roberto Torretti, Tomás E.Zwank e Ezequiel de Olaso. Buenos Aires: Editorial Charcas. 1982.
Strickland, Lloyd. Leibniz translations. [Confessio philosophi. Trad. e notas de Yvon Belaval. Paris: 1970]